O efeito líquido de nosso pacto social – Pesquisas sobre tributação e proteção social em tempos de reformas

Mais por pres­sa do que por estra­té­gia, Gue­des e Bol­so­na­ro aca­ba­ram expli­ci­tan­do nas últi­mas sema­nas o papel do Con­gres­so em defi­nir o cará­ter dis­tri­bu­ti­vo das finan­ças públi­cas. De olho no calen­dá­rio, o gover­no envi­ou a pro­pos­ta do Auxí­lio Bra­sil (Medi­da Pro­vi­só­ria 1061/21) visan­do subs­ti­tuir o Bol­sa Famí­lia por bene­fí­ci­os mais gene­ro­sos que pos­sam ren­der fru­tos polí­ti­cos antes das elei­ções. Acon­te­ce que a entre­ga che­gou no momen­to em que ambas as casas tra­tam de refor­mas tri­bu­tá­ri­as, a do Impos­to de Ren­da na Câma­ra (Pro­je­to de Lei 2337/21) e a uni­fi­ca­ção de tri­bu­tos no Sena­do (PEC 110/19). A coin­ci­dên­cia das dis­cus­sões evi­den­cia o papel do Esta­do de reti­rar recur­sos das famí­li­as com uma mão e devol­ver com a outra (não neces­sa­ri­a­men­te para a mes­ma), a essa con­ta de mais e menos cha­ma­mos de resul­ta­do líqui­do e, nes­se caso, ele expres­sa o pac­to soci­al que estabelecemos.

 

A pró­pria expo­si­ção de moti­vos da refor­ma do Impos­to de Ren­da dis­cu­te essa vin­cu­la­ção em ter­mos orça­men­tá­ri­os: “as alte­ra­ções tri­bu­tá­ri­as pre­sen­te nes­te Pro­je­to de Lei (…) pode­rão ser con­si­de­ra­das, ao nível da arre­ca­da­ção pre­vis­ta para 2022, como medi­da com­pen­sa­tó­ria para a des­pe­sa adi­ci­o­nal (…) decor­ren­te do novo pro­gra­ma soci­al do Gover­no Fede­ral.1Dis­po­ní­vel em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01rw9emyfz0b8j62bkhb1jn3wm968266.node0?codteor=2034420&filename=PL+2337/2021 Mais recen­te­men­te, porém, a arti­cu­la­ção polí­ti­ca do gover­no afir­mou que o anda­men­to do Auxí­lio Bra­sil é inde­pen­den­te da recri­a­ção de impos­tos sobre lucros e divi­den­dos.2 Info­Mo­ney – 25 de Agos­to. Dis­po­ní­vel em: https://www.infomoney.com.br/politica/auxilio-brasil-e-a-prioridade-de-bolsonaro-e-nao-esta-vinculado-a-tributacao-de-dividendos-diz-ministra/ Ain­da assim, tan­to a Lei de Res­pon­sa­bi­li­da­de Fis­cal exi­ge que se expli­ci­te a fon­te de recur­sos para novos gas­tos, como é impor­tan­te para a soci­e­da­de que se dis­cu­ta de que for­ma vamos finan­ci­ar nos­sa pro­te­ção social.

 

O acom­pa­nha­men­to da tra­mi­ta­ção des­ses pro­je­tos no Con­gres­so, em par­ti­cu­lar da refor­ma do Impos­to de Ren­da, têm demons­tra­do a difi­cul­da­de de rever­ter os arran­jos soci­ais esta­be­le­ci­dos com base nas for­mu­la­ções do perío­do neo­li­be­ral dos anos 19903 Para uma aná­li­se das difi­cul­da­des de tra­mi­ta­ção de pro­pos­tas que bus­cam aumen­tar a pro­gres­si­vi­da­de do sis­te­ma tri­bu­tá­rio bra­si­lei­ro de 1988 até hoje há o tra­ba­lho recém publi­ca­do de Laz­za­ri (2021), “Sis­te­mas regres­si­vos em demo­cra­ci­as desi­guais: o caso bra­si­lei­ro”. Dis­po­ní­vel em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-24082021–205305/publico/2021_EduardoAlvesLazzari_VCorr.pdf . O ele­men­to mais emble­má­ti­co des­se desa­fio encon­tra-se na isen­ção dos lucros e divi­den­dos na pes­soa físi­ca, uma ano­ma­lia mun­di­al que é afrou­xa­da a cada roda­da de nego­ci­a­ções do rela­tor Cel­so Sabi­no (PSDB-PA)4Cor­reio Bra­zi­li­en­se – 18 de Agos­to. Dis­po­ní­vel em: https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2021/08/4944521-lobby-pela-nao-tributacao-de-dividendos-trava-reforma-afirma-relator.html . Enquan­to a pro­pos­ta ini­ci­al pre­via a taxa­ção com uma alí­quo­ta de 20% para lucros dis­tri­buí­dos aci­ma de R$ 20 mil, hoje já se dis­cu­te a isen­ção para todas as empre­sas do regi­me de lucro pre­su­mi­do5Nes­sa moda­li­da­de de decla­ra­ção, a pró­pria Recei­ta Fede­ral defi­ne a ren­ta­bi­li­da­de da fir­ma, de acor­do com o setor de ati­vi­da­de, sem a neces­si­da­de de apre­sen­ta­ção de cus­tos e recei­tas de for­ma deta­lha­da. com ren­di­men­to de até R$ 4,8 milhões, o que deve bene­fi­ci­ar qua­se 1 milhão de con­tri­buin­tes incluin­do, entre esses, pro­fis­si­o­nais libe­rais que estão no topo da pirâ­mi­de dis­tri­bu­ti­va

 

O afrou­xa­men­to da cobran­ça sobre esses ren­di­men­tos, con­tu­do, enfra­que­ce o poten­ci­al da refor­ma de tor­nar o con­jun­to de nos­sos impos­tos dire­tos mais pro­gres­si­vos e man­tém pri­vi­lé­gi­os injus­ti­fi­ca­dos dian­te de um cená­rio de agra­va­men­to da fra­tu­ra soci­al que nos carac­te­ri­za. Revi­san­do estu­dos naci­o­nais e inter­na­ci­o­nais sobre o tema, este tex­to bus­ca dis­cu­tir a ques­tão da pro­gres­si­vi­da­de tri­bu­tá­ria e como a arre­ca­da­ção se vin­cu­la com as polí­ti­cas de pro­te­ção soci­al e garan­tia de renda.

 

Mas então, se o inte­res­se está em enten­der o resul­ta­do des­sa soma, res­ta saber quais núme­ros deve­mos con­si­de­rar e essa não é uma deci­são tri­vi­al. Um dos méto­dos mais difun­di­dos con­sis­te em uti­li­zar as pes­qui­sas domi­ci­li­a­res, em par­ti­cu­lar a Pes­qui­sa de Orça­men­tos Fami­li­a­res (POF) do IBGE, que per­mi­te uma iden­ti­fi­ca­ção pre­ci­sa de todos os impos­tos e trans­fe­rên­ci­as, jun­to a uma boa men­su­ra­ção da ren­da do tra­ba­lho6Não tan­to no caso da ren­da do capi­tal.. Um exem­plo é o estu­do publi­ca­do pelo IPEA em agos­to do ano pas­sa­do com o títu­lo “Impac­tos redis­tri­bu­ti­vos das trans­fe­rên­ci­as públi­cas mone­tá­ri­as e da tri­bu­ta­ção dire­ta”, no qual os auto­res iden­ti­fi­cam o efei­to de cada um dos impos­tos dire­tos e das trans­fe­rên­ci­as de ren­da sobre a desigualdade. 

 

Os resul­ta­dos indi­cam que as trans­fe­rên­ci­as, incluin­do pre­vi­dên­cia e pro­gra­mas assis­ten­ci­ais, são res­pon­sá­veis por redu­zir a desi­gual­da­de da ren­da de mer­ca­do7Ou seja, a dis­tri­bui­ção da ren­da tal como resul­ta da remu­ne­ra­ção do tra­ba­lho e do capi­tal na soci­e­da­de. Enquan­to con­cei­to, a ren­da do mer­ca­do, ou ren­da mone­tá­ria, ser­ve para dife­ren­ci­ar com rela­ção a ren­da total, na qual são incluí­dos outros bens e ser­vi­ços adqui­ri­dos de for­ma não mone­tá­ria. Por exem­plo, o aten­di­men­to em um pos­to de saú­de públi­co repre­sen­ta um ser­vi­ço que não é pago, logo é pos­sí­vel atri­buir um valor a ele e cons­truir uma nova ren­da que o inclua. medi­da pelo Gini em algo pró­xi­mo a 11%, enquan­to o impac­to dos tri­bu­tos dire­tos tem um efei­to pró­xi­mo a 2%. Entre os impos­tos dire­tos, o IR é aque­le que mais con­tri­bui para essa que­da, enquan­to os impos­tos sobre patrimô­nio apre­sen­tam bai­xo impac­to, com uma peque­na con­tri­bui­ção do IPTU e um efei­to total regres­si­vo do IPVA (SILVEIRA et al., 2020). A ques­tão do IR, porém, está no fato de sua pro­gres­si­vi­da­de não se efe­ti­var para todos os estra­tos da ren­da, exa­ta­men­te por­que entre os mais ricos a par­ce­la dos ren­di­men­tos do capi­tal que é isen­ta de taxa­ção pas­sa a repre­sen­tar par­te mais sig­ni­fi­ca­ti­va da ren­da total.

 

Essa ques­tão tem exi­gi­do uma con­tí­nua revi­são dos dados usa­dos nas con­tas de adi­ção do efei­to líqui­do, na medi­da em que as pes­qui­sas por amos­tra­gem domi­ci­li­ar são inca­pa­zes de cap­tar a ver­da­dei­ra dis­tri­bui­ção de ren­da para o topo. Após os tra­ba­lhos de Tho­mas Piketty sobre os ganhos expli­ca­ti­vos da inclu­são dos dados de impos­to de ren­da alguns estu­dos repro­du­zi­ram a meto­do­lo­gia para o caso bra­si­lei­ro. O estu­do de Orair e Gobet­ti (2016) foi um dos pri­mei­ros a uti­li­zar das infor­ma­ções dis­po­ni­bi­li­za­das pela Recei­ta Fede­ral para con­si­de­rar os ren­di­men­tos dos 10% mais ricos da popu­la­ção jun­to às infor­ma­ções dos 90% res­tan­tes a par­tir de pes­qui­sas domi­ci­li­a­res. A par­tir de dados de 2013 encon­tram que o Impos­to de Ren­da é res­pon­sá­vel por redu­zir a desi­gual­da­de men­su­ra­da pelo Gini em 2,8%, uma con­tri­bui­ção menor do que a veri­fi­ca­da para os paí­ses de ren­da mais ele­va­da da Amé­ri­ca Lati­na e menos da meta­de do impac­to médio em paí­ses da OCDE. Além dis­so, os auto­res iden­ti­fi­cam que a pro­gres­si­vi­da­de do impos­to medi­da por sua alí­quo­ta média é rever­ti­da para o 0,5% mais rico da população. 

 

A incor­po­ra­ção dos dados tri­bu­tá­ri­os per­mi­tiu inclu­si­ve colo­car em xeque a ten­dên­cia de redu­ção da desi­gual­da­de dos salá­ri­os no iní­cio do sécu­lo, dada sua com­pen­sa­ção por outros ren­di­men­tos do capi­tal, como mos­tra­ram Medei­ros, Sou­za e de Cas­tro (2015). Assim, o desa­fio do apri­mo­ra­men­to dos dados tem leva­do recen­te­men­te à cons­tru­ção de uma com­pa­ti­bi­li­za­ção entre as pes­qui­sas domi­ci­li­a­res, infor­ma­ções tri­bu­tá­ri­as e as con­tas naci­o­nais. De Rosa, Flo­res e Mor­gan (2021) é um exem­plo des­sa meto­do­lo­gia para a Amé­ri­ca Lati­na, na qual con­si­de­ram até mes­mo a dis­tri­bui­ção do lucro reti­do pelas fir­mas entre as famí­li­as do topo. A par­tir de uma con­cep­ção de que toda ren­da é uti­li­za­da com base nas esco­lhas dos indi­ví­du­os, o estu­do é capaz de iden­ti­fi­car a dis­tri­bui­ção do pro­du­to naci­o­nal entre os vári­os estra­tos da soci­e­da­de. O inte­res­san­te é que a rever­são da ten­dên­cia de que­da da desi­gual­da­de é encon­tra­da não ape­nas para o Bra­sil, mas tam­bém para o Méxi­co e o Chile.

 

Se até mes­mo a manei­ra de men­su­rar o impac­to líqui­do do finan­ci­a­men­to do Esta­do e sua pro­vi­são de ser­vi­ços está sob dis­pu­ta, o que dizer da defi­ni­ção des­sas polí­ti­cas. Exa­ta­men­te por isso é cru­ci­al dis­cu­tir­mos de manei­ra ampla quais prin­cí­pi­os dese­ja­mos que ori­en­tem o pac­to soci­al resul­tan­te des­sa nova roda­da de nego­ci­a­ções. Um des­ses prin­cí­pi­os, como mos­tra­ram as pes­qui­sas aci­ma, deve ser ampli­ar a inci­dên­cia dos tri­bu­tos dire­tos sobre ren­di­men­tos do capi­tal, em espe­ci­al a dis­tri­bui­ção de lucros e dividendos. 

 

Quan­do o pre­si­den­te dos Esta­dos Uni­dos, Joe Biden, anun­ci­ou seu pla­no de empre­gos ele afir­mou que a polí­ti­ca econô­mi­ca ame­ri­ca­na não seria mais pau­ta­da pela noção de que é pos­sí­vel bene­fi­ci­ar a todos a par­tir de incen­ti­vos ape­nas para o topo – conhe­ci­do como tric­kle down eco­no­mics 8Dis­po­ní­vel em: https://www.nbcnews.com/video/biden-claims-trickle-down-economics-has-never-worked-and-promotes-his-jobs-plan-111026245512 . De fato, o estu­do de Hope e Lim­berg (2020) iden­ti­fi­ca um efei­to per­ver­so na desi­gual­da­de do cor­te de impos­tos sobre os mais ricos em dezoi­to paí­ses da OCDE. Para isso uti­li­zam uma medi­da índi­ce que con­si­de­ra sete ele­men­tos da estru­tu­ra tri­bu­tá­ria, como taxa­ção de heran­ças, mai­o­res alí­quo­tas mar­gi­nais do impos­to de ren­da, entre outros. Assim, eles cri­am uma clas­si­fi­ca­ção para mudan­ças em favor dos mais ricos iden­ti­fi­can­do alte­ra­ções repen­ti­nas nes­se núme­ro índi­ce e bus­cam a rela­ção des­sas medi­das com desi­gual­da­de, cres­ci­men­to e empre­go. O inte­res­san­te do estu­do é que a desi­gual­da­de é a úni­ca variá­vel que res­pon­de de manei­ra rele­van­te, indi­can­do uma ele­va­ção de 0,8 pon­tos per­cen­tu­ais na par­ce­la do 1% mais rico na ren­da total após cin­co anos das medi­das. Nem cres­ci­men­to, nem empre­go rea­gem de manei­ra significativa.

 

Outra pes­qui­sa que refor­ça a dúvi­da sobre poten­ci­ais bene­fí­ci­os do cor­te de impos­tos foi fei­ta por Gechert e Heim­ber­ger (2021) ana­li­san­do os resul­ta­dos de 41 estu­dos que bus­cam rela­ci­o­nar cor­te de impos­tos para fir­mas e cres­ci­men­to econô­mi­co. Segun­do os auto­res, há um viés de publi­ca­ção favo­rá­vel aos resul­ta­dos posi­ti­vos e, ao con­tro­lar por essa dis­tor­ção na dis­tri­bui­ção dos coe­fi­ci­en­tes, não é mais pos­sí­vel dizer que o impac­to é dife­ren­te de zero. Nova­men­te, tra­ta-se não ape­nas da defi­ni­ção de dire­tri­zes para o deba­te públi­co, mas até mes­mo de com­pre­en­são sobre a manei­ra como os temas econô­mi­cos são defi­ni­dos a par­tir de suas vári­as esfe­ras de deba­te, na aca­de­mia, no par­la­men­to, no mer­ca­do e na com­pre­en­são mais ampla pela popu­la­ção. E para com­ple­tar, o estu­do de Matray e Bois­sel (2020) sobre o aumen­to na taxa­ção do lucro dis­tri­buí­do na Fran­ça em 2013 mos­tra um impac­to posi­ti­vo e rele­van­te sobre o inves­ti­men­to e, em menor grau, sobre o empre­go. Segun­do os auto­res, as fir­mas fran­ce­sas inves­ti­ram um ter­ço do lucro reti­do extra, repre­sen­tan­do um aumen­to de 15% do inves­ti­men­to pré-ele­va­ção dos impostos.

 

Todos esses ele­men­tos indi­cam que há um espa­ço cres­cen­te na pes­qui­sa econô­mi­ca para supe­rar os para­dig­mas que sus­ten­ta­ram as mudan­ças na tri­bu­ta­ção pro­pos­tas na déca­da de 1990. No caso bra­si­lei­ro, soma-se a esse novo cená­rio aca­dê­mi­co a mai­or aber­tu­ra para dis­cu­tir a vin­cu­la­ção entre impos­tos e desi­gual­da­de. Segun­do a pes­qui­sa de opi­nião “Nós e as Desi­gual­da­des”, rea­li­za­da no final de 2020 pelo Data­Fo­lha sob enco­men­da da Oxfam Bra­sil, 56% dos bra­si­lei­ros acei­tam aumen­to de impos­tos em tro­ca de mais ser­vi­ços públi­cos, um aumen­to de 25 pon­tos per­cen­tu­ais com rela­ção a 2019. Um núme­ro ain­da mai­or (86%) acre­di­ta que os ricos deve­ri­am pagar ain­da mais para cus­te­ar ser­vi­ços essen­ci­ais e que o Esta­do é res­pon­sá­vel por redu­zir a dife­ren­ça entre ricos e pobres. Ou seja, há uma ampla acei­ta­ção na soci­e­da­de para alte­rar­mos o efei­to líqui­do da inter­fe­rên­cia esta­tal na ren­da das famílias.

 

Den­tre os estu­dos recen­tes, outra publi­ca­ção do IPEA inti­tu­la­da “A refor­mu­la­ção das trans­fe­rên­ci­as de ren­da no Bra­sil: simu­la­ções e desa­fi­os” traz uma das mais com­ple­tas aná­li­ses sobre cami­nhos pos­sí­veis para o finan­ci­a­men­to de uma ampli­a­ção da rede de pro­te­ção soci­al. Os auto­res ava­li­am três mode­los de pro­gra­mas de trans­fe­rên­cia de ren­da a serem imple­men­ta­dos após o fim do Auxí­lio Emer­gen­ci­al: um foca­li­za­do, vol­ta­do a aten­der as famí­li­as em situ­a­ção de extre­ma pobre­za e pobre­za; outro uni­ver­sal, aos mol­des de uma ren­da bási­ca da cida­da­nia; e outro híbri­do, em que have­ria o bene­fí­cio uni­ver­sal para cri­an­ças e jovens até 18 anos e um bene­fí­cio para famí­li­as em situ­a­ção de extre­ma pobre­za e pobre­za. É impor­tan­te notar, con­tu­do, que a defi­ni­ção das linhas de extre­ma pobre­za (R$ 240) e pobre­za (R$ 520) pelos auto­res con­si­de­ra o valor real mais ele­va­do da ele­gi­bi­li­da­de do Pro­gra­ma Bol­sa Famí­lia (PBF), atin­gi­do em 2009, além de guar­dar rela­ção com cri­té­ri­os para o rece­bi­men­to do Bene­fí­cio de Pres­ta­ção Con­ti­nu­a­da (BPC) e as linhas de pobre­za do Ban­co Mun­di­al. Final­men­te, para cada um dos mode­los são tes­ta­dos três orça­men­tos dis­tin­tos: um que ape­nas rema­ne­ja bene­fí­ci­os já exis­ten­tes (PBF, Abo­no Sala­ri­al, Salá­rio Famí­lia e fim das dedu­ções do IR) no valor de R$ 58 bilhões e outros dois que exi­gem aumen­to dos gas­tos (R$ 120 e 180 bilhões).

 

Em qua­se todos os cená­ri­os ana­li­sa­dos, o resul­ta­do sobre a desi­gual­da­de repre­sen­ta uma melho­ra com rela­ção ao atu­al Bol­sa Famí­lia, mas com um impac­to menor do que o Auxí­lio Emer­gen­ci­al. Isso por­que o mon­tan­te gas­to9Ape­nas em 2020 foram R$ 290 bilhões. Dis­po­ní­vel em: https://www.tesourotransparente.gov.br/visualizacao/painel-de-monitoramentos-dos-gastos-com-covid-19 e a abran­gên­cia do Auxí­lio são mui­to supe­ri­o­res a qual­quer um dos cená­ri­os, fazen­do com que seu efei­to sir­va antes como refe­rên­cia do que como meta. Ain­da assim, os auto­res fri­sam os bene­fí­ci­os dos mode­los foca­li­za­dos e híbri­do sobre o uni­ver­sal ao con­si­de­rar o valor do bene­fí­cio rece­bi­do por cada famí­lia. Mes­mo no cená­rio de mai­or orça­men­to (R$ 180 bilhões), o bene­fí­cio por pes­soa não pas­sa de R$ 70, e no cená­rio de menor orça­men­to o Gini resul­tan­te seria ain­da mais ele­va­do que o atu­al, úni­co caso em que isso acon­te­ce. Já os demais mode­los apre­sen­tam uma mes­ma ten­dên­cia geral, com resul­ta­dos melho­res que o atu­al em todos os cenários.

 

Tão inte­res­san­te quan­to essa aná­li­se são as for­mu­la­ções dos auto­res dos cami­nhos para finan­ci­ar o aumen­to dos gas­tos para R$ 120 e R$ 180 bilhões. Eles ana­li­sam pro­pos­tas de tri­bu­tos dire­tos sobre a ren­da e o patrimô­nio, uni­fi­ca­ção de impos­tos fede­rais, esta­du­ais e muni­ci­pais em um úni­co Impos­to sobre Bens e Ser­vi­ços (IBS) – como apre­sen­ta­do pela PEC 110 -, além de defen­de­rem a ins­ti­tui­ção do Fun­do de Com­ba­te e Erra­di­ca­ção da Pobre­za (FCEP) que, assim como o Impos­to sobre Gran­de For­tu­nas (IGF), está pre­vis­to na Cons­ti­tui­ção de 1988, mas nun­ca foi regu­la­men­ta­do. Con­si­de­ran­do o cená­rio de gas­tos no valor de R$ 120 bilhões os auto­res simu­lam dois mode­los de Impos­to de Ren­da, aumen­tan­do a alí­quo­ta mar­gi­nal dos atu­ais 27,5 para 35 e 40%, além de ampli­a­ção da base tri­bu­tá­ria para incluir divi­den­dos e fun­dos de inves­ti­men­to de tal for­ma que a arre­ca­da­ção aumen­ta em 0,9 e 1,5% do PIB, res­pec­ti­va­men­te. Já com a ins­ti­tui­ção do IGF pre­vêem um acrés­ci­mo da arre­ca­da­ção de 0,3% do PIB e, final­men­te, uti­li­zam de uma série de alí­quo­tas pos­sí­veis para o novo IBS, con­si­de­ran­do tam­bém a pos­si­bi­li­da­de dele ser dire­ta­men­te devol­vi­do aos con­su­mi­do­res mais pobres. Assim, aca­bam por dese­nhar uma série de pos­si­bi­li­da­des para a ampli­a­ção dos bene­fí­ci­os soci­ais aumen­tan­do a pro­gres­si­vi­da­de do sis­te­ma tri­bu­tá­rio e dire­ci­o­nan­do os novos recur­sos dire­ta­men­te para transferências.

 

A aná­li­se mais deta­lha­da des­se estu­do nos é útil para evi­den­ci­ar o rear­ran­jo do orça­men­to neces­sá­rio para que os pro­gra­mas sejam finan­ci­a­dos. Con­tu­do, para além dis­so seria tam­bém neces­sá­rio rever o Teto de Gas­tos, ou ao menos des­vin­cu­lar as trans­fe­rên­ci­as dos gas­tos con­si­de­ra­dos por ele. São ele­men­tos que evi­den­ci­am as amar­ras que o perío­do recen­te impôs sobre qual­quer novo acor­do soci­al pos­sí­vel. Se dese­ja­mos alte­rar o efei­to líqui­do do impac­to esta­tal sobre as ren­das fami­li­a­res é neces­sá­rio rever esse arcabouço. 

 

Por fim, é pre­ci­so dei­xar níti­do que mudan­ças nes­se sen­ti­do não afe­tam ape­nas a desi­gual­da­de, mas tam­bém exer­cem for­te influên­cia posi­ti­va sobre o nível de ati­vi­da­de. Dois estu­dos recen­tes evi­den­ci­am isso, o pri­mei­ro é a Nota de Polí­ti­ca Econô­mi­ca nº 8 publi­ca­da pelo Made que dis­cu­te os poten­ci­ais bene­fí­ci­os de uma trans­fe­rên­cia para os 30% mais pobres a par­tir da taxa­ção do 1% mais rico. Dado o dife­ren­ci­al na pro­pen­são mar­gi­nal a con­su­mir des­ses estra­tos, uma trans­fe­rên­cia de R$ 125 per capi­ta para os três pri­mei­ros déci­mos da dis­tri­bui­ção, finan­ci­a­dos inte­gral­men­te por impos­tos sobre o per­cen­til mais rico, seria capaz de ele­var o PIB em até 2,4% (TONETO, RIBAS, CARVALHO, 2020). Já outro estu­do recen­te do Nemea ana­li­sa um cená­rio seme­lhan­te, con­si­de­ran­do trans­fe­rên­ci­as fis­cal­men­te neu­tras para os mes­mos 30% mais pobres. Con­tu­do, o finan­ci­a­men­to é repar­ti­do de tal for­ma que o 1% mais rico arque com 80% dos cus­tos do pro­gra­ma, enquan­to os 9% mais ricos seguin­tes arquem com o res­tan­te. Uti­li­zan­do de um mode­lo de equi­lí­brio geral com­pu­tá­vel os auto­res simu­lam o paga­men­to a par­tir de 2022 até 2040 de R$ 217 por famí­lia e iden­ti­fi­cam um impac­to posi­ti­vo sobre o PIB de 0,52% no pri­mei­ro ano e 1,55% no acu­mu­la­do do perío­do (FREIRE et al, 2021). 

 

São meto­do­lo­gi­as e pro­pos­tas dife­ren­tes que apon­tam pos­si­bi­li­da­des de pro­mo­ver cres­ci­men­to a par­tir da redu­ção das desi­gual­da­des. A sele­ção do con­jun­to dos estu­dos apre­sen­ta­dos nes­te tex­to visa mos­trar que o espa­ço para redis­cu­tir o efei­to líqui­do de nos­so pac­to soci­al está aber­to. Há na pro­du­ção aca­dê­mi­ca recen­te naci­o­nal e estran­gei­ra mos­tras da neces­si­da­de de se ques­ti­o­nar anti­gas cren­ças sobre os male­fí­ci­os da tri­bu­ta­ção sobre a ati­vi­da­de, além de indi­car a neces­si­da­de de ter­mos a desi­gual­da­de no cen­tro da dis­cus­são. Nes­se momen­to em que o Con­gres­so se debru­ça simul­ta­ne­a­men­te sobre a estru­tu­ra de impos­tos e de trans­fe­rên­ci­as, é pos­sí­vel exi­gir­mos com fun­da­men­tos téc­ni­cos e apoio soci­al uma mudan­ça rumo a um acor­do soci­al mais cons­ci­en­te e inclusivo.

Referências bibliográficas

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