A atuação de Bancos Centrais nas crises de 2008 e 2020

Em pou­co mais de 10 anos o mun­do expe­ri­men­tou duas cri­ses econô­mi­co-finan­cei­ras de gran­des pro­por­ções, mas com cau­sas com­ple­ta­men­te dis­tin­tas. A cri­se de 2008, tam­bém cha­ma­da de cri­se do sub­pri­me, teve sua ori­gem no mer­ca­do imo­bi­liá­rio ame­ri­ca­no, em espe­ci­al atra­vés de títu­los hipo­te­cá­ri­os pro­ble­má­ti­cos emi­ti­dos por inú­me­ras ins­ti­tui­ções ban­cá­ri­as. A de 2020, por sua vez, não se ori­gi­nou no mer­ca­do finan­cei­ro, mas foi con­sequên­cia da cri­se sani­tá­ria pro­vo­ca­da pela pan­de­mia do coro­na­ví­rus. Ape­sar de dife­ren­tes cau­sas, ambas deman­da­ram res­pos­tas fis­cais por par­te de gover­nos cen­trais e res­pos­tas mone­tá­ri­as por par­te de ban­cos cen­trais bas­tan­te simi­la­res em vári­os aspectos.

De for­ma geral, a aten­ção da auto­ri­da­de mone­tá­ria em um momen­to de cri­se vol­ta-se para a garan­tia de liqui­dez, uma con­sequên­cia da “fuga para a segu­ran­ça” cau­sa­da pelo momen­to de incer­te­za e ins­ta­bi­li­da­de.  Logo no iní­cio de 2007, notí­ci­as de per­das envol­ven­do emprés­ti­mos hipo­te­cá­ri­os (sub­pri­me loan/mortgage) come­ça­ram a sur­gir. Títu­los vin­cu­la­dos a emprés­ti­mos hipo­te­cá­ri­os eram, até o momen­to, con­si­de­ra­dos como a opção segu­ra de mui­tas car­tei­ras de inves­ti­men­to. No final do mes­mo ano, ban­cos diver­sos pas­sa­ram a com­prar títu­los públi­cos a taxas bai­xís­si­mas de ren­di­men­to, como for­ma de garan­tia de liqui­dez futu­ra e esta­bi­li­da­de (Cec­che­ti, 2009).

Como res­pos­ta, o Fede­ral Reser­ve, ban­co cen­tral ame­ri­ca­no, par­tiu para con­se­cu­ti­vas redu­ções na taxa de redes­con­to, aproximando‑a da taxa de emprés­ti­mo inter­ban­cá­rio over­night, como uma ten­ta­ti­va de incre­men­tar a liqui­dez das ins­ti­tui­ções finan­cei­ras. Entre­tan­to, com as suces­si­vas redu­ções nas taxas cita­das, as fer­ra­men­tas usu­ais do BC pas­sa­ram a sur­tir pou­co efei­to sobre o cré­di­to dis­po­ní­vel. A solu­ção foi colo­car em prá­ti­ca o TAF, Term Auc­ti­on Faci­lity, que con­sis­tia em um ter­mo de redes­con­to nego­ci­a­do com ban­cos de for­ma anô­ni­ma, por uni­da­des locais do Fed, visan­do ban­cos meno­res com pro­ble­mas de sol­vên­cia. Cec­che­ti (2009) apon­ta para o TAF como uma polí­ti­ca de sub­sí­dio de capi­tal, uma vez que os cola­te­rais ofe­re­ci­dos pelas ins­ti­tui­ções empres­tan­tes eram qua­se sem­pre nego­ci­a­dos aci­ma de seu valor de mercado.

Além do TAF, foi cri­a­do o Term Secu­ri­ti­es Len­ding Faci­lity (TSLF), segun­do o qual títu­los antes nego­ci­a­dos no over­night pas­sa­ram a ganhar um pra­zo de 28 dias. Soman­do-se a isso, as novas nego­ci­a­ções entre dea­lers e o ban­co cen­tral tor­na­vam pos­sí­vel o uso de títu­los hipo­te­cá­ri­os resi­den­ci­ais bem ava­li­a­dos como cola­te­rais aos títu­los públi­cos. Ain­da no sen­ti­do de expan­dir a gama de cola­te­rais acei­ta pela auto­ri­da­de mone­tá­ria, o Fed cria o Pri­mary Dea­ler Cre­dit Faci­lity (PDCF), que per­mi­tia aos dea­lers empres­ta­rem jun­to ao ban­co cen­tral, com­pro­me­ten­do dife­ren­tes títu­los (hipo­te­cá­ri­os, segu­ri­da­des muni­ci­pais, entre outros) como cola­te­rais nas nego­ci­a­ções. Assim como o Fed, o Ban­co Cen­tral Euro­peu, expan­diu seus reque­ri­men­tos de cola­te­rais de somen­te títu­los de gover­nos para títu­los pri­va­dos ou mes­mo comerciais.

No entan­to, de manei­ra mais polê­mi­ca, auto­ri­da­des mone­tá­ri­as tam­bém opta­ram por pres­tar socor­ro (bail out) enti­da­des finan­cei­ras em situ­a­ções pro­ble­má­ti­cas. O Fede­ral Reser­ve dire­ci­o­nou recur­sos que soma­ram US$ 1,03 tri­lhão1Em valo­res de 2008.(Nan­kin e Sch­midt, 2009) em socor­ro a cin­co ins­ti­tui­ções finan­cei­ras (espe­ci­fi­ca­men­te: Bear Ste­arns, FannieMae/Freddie Mac, AIG, Citi­group, Bank of Ame­ri­ca). Con­tu­do, a efe­ti­vi­da­de do socor­ro pres­ta­do ao Bear Ste­arns, um dos ban­cos no epi­cen­tro da cri­se, é ques­ti­o­ná­vel: a neces­si­da­de de fun­dos no cur­to-pra­zo impli­cou inva­ri­a­vel­men­te em gran­des per­das para o ban­co de inves­ti­men­tos, tan­to para seus aci­o­nis­tas quan­to fun­ci­o­ná­ri­os da ins­ti­tui­ção. Ain­da que o socor­ro não tenha garan­ti­do a total recu­pe­ra­ção das enti­da­des socor­ri­das2Bear Ste­arns foi adqui­ri­do pelo JP Mor­gan, com auxí­lio do Fed, por exem­plo., con­tu­do, os emprés­ti­mos volu­mo­sos rea­li­za­dos pela auto­ri­da­de mone­tá­ria asse­gu­ra­ram a con­fi­an­ça do mer­ca­do no ple­no fun­ci­o­na­men­to do sis­te­ma finan­cei­ro ame­ri­ca­no (Cec­che­ti, 2009)

De manei­ra simi­lar, o Ban­co Cen­tral Euro­peu pres­tou socor­ro finan­cei­ro ao ban­co For­tis, além de auxi­li­ar recu­pe­ra­ção do Bank of Ire­land, do holan­dês ING e do islan­dês Glit­nir, par­ci­al­men­te esta­ti­za­do. Em espe­ci­al para o bel­ga-holan­dês For­tis, rumo­res sobre a inca­pa­ci­da­de de sol­vên­cia do ban­co resul­ta­ram numa agu­da cri­se de liqui­dez da ins­ti­tui­ção. Jun­to com os gover­nos locais, o BCE ofe­re­ceu €11,2 bilhões como inves­ti­men­to con­jun­to ao ban­co no fim daque­le mês. Além dis­so, em outu­bro do mes­mo ano, ban­co holan­dês ABN-AMRO com­prou total­men­te a ati­vi­da­de de vare­jo da ins­ti­tui­ção. Ao fim de 2008, medi­an­te o fra­cas­so do ban­co holan­dês em recu­pe­rar a sol­vên­cia do For­tis, a ins­ti­tui­ção foi par­ci­al­men­te ven­di­da ao ban­co fran­cês BNP Pari­bas (Edmonds e Marshall, 2010).

Além dis­so, a enti­da­de mone­tá­ria euro­peia tam­bém expan­diu os ter­mos de swaps cam­bi­ais, que per­mi­tia que ban­cos cen­trais locais rea­li­zas­sem emprés­ti­mos de câm­bio entre si, garan­tin­do sol­vên­cia. No entan­to, em ter­mos de taxa de juros, o prin­ci­pal meca­nis­mo da polí­ti­ca mone­tá­ria, o BCE se man­te­ve iner­te até julho de 2008, quan­do pas­sou a redu­zir a taxa bási­ca de juros até seu míni­mo de 1% em junho do ano seguin­te. A posi­ção con­ser­va­do­ra do BCE visa­va man­ter a esta­bi­li­da­de do mer­ca­do finan­cei­ro do con­ti­nen­te, bem como evi­tar bolhas de ati­vos (Edmonds e Marshall, 2010). O Ban­co da Ingla­ter­ra, o Ban­co Cen­tral Euro­peu e o Ban­co Naci­o­nal da Suí­ça con­cor­da­ram, em outu­bro de 2008, em pro­ver $250 bilhões de dóla­res como for­ma de manu­ten­ção de liqui­dez em mer­ca­dos euro­peus, que pro­ve­ram liqui­dez às ins­ti­tui­ções até mea­dos de 2010.

De manei­ra mais dis­rup­ti­va, o BCE viu no quan­ti­ta­ti­ve easing (a expan­são do balan­ço de paga­men­tos do ban­co cen­tral via com­pra de ati­vos) for­ma de garan­tia de liqui­dez para o sis­te­ma finan­cei­ro euro­peu. No entan­to, o peso polê­mi­co da prá­ti­ca e as con­si­de­ra­ções sobre a efe­ti­vi­da­de do uso de emprés­ti­mos ili­mi­ta­dos de títu­los de cur­to e lon­go pra­zo fize­ram que a medi­da fos­se con­si­de­ra­vel­men­te mais con­ser­va­do­ra do que o espe­ra­do, atin­gin­do ape­nas 5% do mer­ca­do de títu­los (Edmonds e Marshall, 2010).

O Ban­co Cen­tral do Bra­sil, por sua vez, viu na pres­são por liqui­dez de ban­cos um tes­te para o ple­no fun­ci­o­na­men­to do Sis­te­ma Finan­cei­ro Naci­o­nal, focan­do seus esfor­ços em con­ser­var os pila­res da polí­ti­ca mone­tá­ria cons­truí­dos des­de mea­dos da déca­da de 1990. É impor­tan­te res­sal­tar aqui que a dita “fuga para segu­ran­ça” repre­sen­tou não uma eva­são de depó­si­tos por todo o sis­te­ma ban­cá­rio, mas sim uma rea­lo­ca­ção do ris­co: enquan­to ban­cos meno­res viram seus mon­tan­tes dimi­nuí­rem agres­si­va­men­te, ban­cos de gran­de por­te aco­lhe­ram os novos cor­ren­tis­tas. Sen­do assim, cou­be ao Ban­co Cen­tral rees­tru­tu­rar e diluir a con­cen­tra­da liqui­dez ban­cá­ria. Para tan­to, em abril de 2009, hou­ve a cri­a­ção de um novo meca­nis­mo mone­tá­rio, o Depó­si­to a Pra­zo com Garan­tia Espe­ci­al (DPGE) do Fun­do Garan­ti­dor de Cré­di­to, um cer­ti­fi­ca­do de depó­si­to ban­cá­rio garan­ti­do pela CETIP, vol­ta­do a peque­nas e médi­as ins­ti­tui­ções finan­cei­ras, garan­tin­do flu­xo de capi­tais para tais instituições.

A enti­da­de mone­tá­ria bra­si­lei­ra assu­miu tam­bém o con­tro­le dos ris­cos rela­ci­o­na­dos a uma pos­sí­vel ero­são de divi­sas, des­va­lo­ri­za­ção agres­si­va do real, expon­do o mer­ca­do de capi­tais e bens bra­si­lei­ros aos cus­tos de um dólar mais caro (Mes­qui­ta e Torós, 2010). Ade­mais, o esta­be­le­ci­men­to de acor­dos de swap cam­bi­ais com o Fede­ral Reser­ve garan­ti­ram esta­bi­li­da­de ao real.

Por sua vez, ape­sar de se tra­tar de uma cri­se sani­tá­ria, com ter­rí­veis reper­cus­sões médi­cas em todo mun­do, a incer­te­za e o ris­co asso­ci­a­dos à pan­de­mia da Covid-19 pro­vo­ca­ram colap­sos finan­cei­ros pró­xi­mos aos vivi­dos na cri­se do sub­pri­me de 2008. Em mar­ço de 2020, os pre­ços de ações de com­pa­nhi­as de todo mun­do vie­ram abai­xo mui­to rapi­da­men­te, acom­pa­nha­dos por uma des­va­lo­ri­za­ção cam­bi­al em rela­ção ao dólar em todo o mun­do e de uma con­tra­ção mas­si­va no setor de ser­vi­ços, que resul­tou em demis­sões em mas­sa. Além dis­so, o mer­ca­do de títu­los públi­cos viu seus pre­ços osci­la­rem brus­ca­men­te em ques­tão de pou­cos dias (Too­ze, 2020a).

Visan­do garan­tir esta­bi­li­da­de econô­mi­ca, ban­cos cen­trais assu­mi­ram a posi­ção de pro­ta­go­nis­tas em meio à cri­se, assim como havi­am ope­ra­do em 2008. Como apon­tam Har­tley e Rebuc­ci (2020), o mun­do viu taxas de juros de cur­to pra­zo con­ver­gi­rem para um pata­mar pró­xi­mo de zero, ou ain­da, assu­mi­rem valo­res nega­ti­vos em alguns cená­ri­os. Assim, prá­ti­cas como quan­ti­ta­ti­ve easing pas­sa­ram a ser mais uma das fer­ra­men­tas dis­po­ní­veis as auto­ri­da­des mone­tá­ri­as como res­pos­ta à cri­se sanitária.

Com o defla­grar de nume­ro­sos casos de Covid-19 na Euro­pa e na Ásia, ain­da em mar­ço de 2020, inves­ti­do­res nos EUA pas­sa­ram a pro­cu­rar, nova­men­te, liqui­dez ime­di­a­ta como for­ma de garan­tia de segu­ran­ça: títu­los públi­cos pas­sa­ram a ser liqui­da­dos, e, como con­sequên­cia, viram a que­da ver­ti­gi­no­sa de seus pre­ços. Con­tra­di­to­ri­a­men­te, o pre­ço das ações não res­pon­deu posi­ti­va­men­te a que­da na deman­da por títu­los, como era de se espe­rar, sofren­do simul­ta­ne­a­men­te for­tes que­das. Em outras pala­vras, inves­ti­do­res não esta­vam dis­pos­tos a pro­cu­rar nem ações, nem títu­los públi­cos, ape­nas dinhei­ro. A con­sequên­cia mais ime­di­a­ta foi uma fuga para o dólar como moe­da de segu­ran­ça. Eco­no­mi­as de todo mun­do viram uma des­va­lo­ri­za­ção de suas moe­das fren­te ao dólar (no Bra­sil, o dólar atin­giu sua máxi­ma his­tó­ri­ca des­de o Pla­no Real, em maio de 2020, quan­do bateu R$ 5,87).

Com a alta deman­da por dóla­res, o mer­ca­do espe­ra­va-se uma res­pos­ta asser­ti­va do Fede­ral Reser­ve. Ain­da em mar­ço de 2020, Jero­me Powell, pre­si­den­te do Fed anun­ci­ou que, pela segun­da vez na his­tó­ria da ins­ti­tui­ção, a auto­ri­da­de mone­tá­ria ame­ri­ca­na der­ru­ba­ria as taxas de juros do país para zero, prá­ti­ca que não se repe­tia des­de a cri­se de 2008. Além dis­so, o Fed, em uma medi­da sur­pre­en­den­te anun­ci­ou que usa­ria de quan­ti­ta­ti­ve easing, ou seja, o ban­co cen­tral atu­a­ria no mer­ca­do de títu­los com­pran­do US$700 bilhões em bonds e mort­ga­ge-bac­ked secu­ri­ti­es. Con­tu­do, o tama­nho gigan­tes­co da QE pode­ria não ser o sufi­ci­en­te para ata­car tama­nha ins­ta­bi­li­da­de e incer­te­za cau­sa­das pelos lock­downs e res­tri­ções no fun­ci­o­na­men­to de negócios.

No fim de mar­ço, como pâni­co finan­cei­ro cau­sa­do pelo coro­na­ví­rus atin­gin­do pro­por­ções glo­bais, não bas­ta­vam medi­das inter­nas de con­tin­gên­cia econô­mi­ca. Nes­se sen­ti­do, 14 ban­cos cen­trais3Bank of Cana­da, Bank of England, Bank of Japan, Euro­pe­an Cen­tral Bank, Swiss Nati­o­nal Bank, Reser­ve Bank of Aus­tra­lia, Ban­co Cen­tral do Bra­sil, Dan­marks Nati­o­nal­bank, Bank of Korea, Ban­co de Mexi­co, Nor­ges Bank, Reser­ve Bank of New Zea­land, Mone­tary Autho­rity of Sin­ga­po­re e Sve­ri­ges Riks­bank, em uma ope­ra­ção coor­de­na­da do Fede­ral Reser­ve, viram a cri­a­ção de novas linhas de swap cam­bi­al, como res­pos­ta à deman­da gene­ra­li­za­da de dóla­res enfren­ta­das por inú­me­ras economias

Ain­da assim, um dos seto­res mais sen­sí­veis à polí­ti­ca mone­tá­ria não esta­va sen­do efe­ti­va­men­te ata­ca­do: o de emprés­ti­mos para gran­des cor­po­ra­ções. Em 23 de mar­ço, Powell anun­ci­ou que o Fed pas­sa­ria a com­prar qual­quer títu­lo dívi­da pri­va­da que esti­ves­se con­si­de­ra­do como apto para inves­ti­men­to por agên­ci­as clas­si­fi­ca­do­ras de ris­co, ou seja, pas­sa­va a ser o garan­ti­dor de inú­me­ros títu­los de dívi­da cor­po­ra­ti­va. Além dis­so, o pro­gra­ma de com­pra de ati­vos adqui­riu US$375 bilhões em títu­los do tesou­ro e US$250 bilhões em títu­los de hipo­te­ca. O ban­co cen­tral ame­ri­ca­no tam­bém expan­diu a vari­e­da­de de títu­los acei­tos como con­tra­par­te de nego­ci­a­ções no mer­ca­do aber­to, pas­san­do ago­ra a acei­tar títu­los públi­cos e incluin­do títu­los cor­po­ra­ti­vos. Alguns dias depois, o Con­gres­so ame­ri­ca­no anun­ci­ou US$454 bilhões para cobrir even­tu­ais per­das do Fed. A con­ta de ati­vos do balan­ço da ins­ti­tui­ção che­gou, no perío­do, a qua­se US$ 3 tri­lhões, cer­ca de 15% do PIB ame­ri­ca­no (Har­tley e Rebuc­ci, 2020).

Dife­ren­te­men­te da cri­se de 2008, a cri­se cau­sa­da pelo coro­na­ví­rus cau­sou efei­tos mais evi­den­tes e dire­tos na eco­no­mia euro­peia. No dia 12 de mar­ço, medi­das de lock­down come­ça­ram a ser imple­men­ta­das em inú­me­ros paí­ses da zona do euro. Simul­ta­ne­a­men­te o Ban­co Cen­tral Euro­peu anun­ci­ou medi­das de garan­tia de liqui­dez atra­vés de suas TLTROs (tar­ge­ted lon­ger-term refi­nan­cing ope­ra­ti­ons), um sub­sí­dio garan­ti­do pelo BCE a ban­cos de for­ma a incre­men­tar o emprés­ti­mo a empre­sas e pes­so­as, que garan­tir a esta­bi­li­da­de do flu­xo de cré­di­to (Too­ze, 2020b). Em outras pala­vras, sua taxa de juros alvo de lon­go-pra­zo sofreu uma redu­ção de 0,25 pon­tos per­cen­tu­ais, carac­te­ri­zan­do o expan­si­o­nis­mo neces­sá­rio da polí­ti­ca mone­tá­ria típi­co de momen­tos de cri­se. Além dis­so, o BCE anun­ci­ou na mes­ma data um paco­te de com­pra de ati­vos no valor de €120 bilhões, que se esten­de­ria até o fim de 2020.

Em mea­dos de mar­ço, o BCE anun­ci­ou o Pan­de­mic Emer­gency Pur­cha­se Pro­gram­me (PEPP) (ECB, 2020a), pro­gra­ma de finan­ci­a­men­to emer­gen­ci­al atra­vés da com­pra de títu­los públi­cos de cor­po­ra­ções e gover­nos do blo­co econô­mi­co comum euro­peu, no valor total de €750 bilhões. No PEPP, a com­pra de títu­los seria admi­nis­tra­da pelo con­se­lho exe­cu­ti­vo do Ban­co Cen­tral Euro­peu de for­ma mais fle­xí­vel que a cos­tu­mei­ra, visan­do seto­res e ins­ti­tui­ções com liqui­dez fra­gi­li­za­da pela pan­de­mia. Além dis­so, par­te do anún­cio da ins­ti­tui­ção mone­tá­ria euro­peia incluía uma revi­são de limi­tes autoin­fli­gi­dos (“self-impo­sed limits”), o que, em outras pala­vras, sig­ni­fi­ca­va uma recon­si­de­ra­ção sobre o regi­me de metas de infla­ção, regras para com­pra de dívi­das públicas.

Além dis­so, assim como rea­li­za­do pelo Fed, o BCE pas­sou a com­prar títu­los de dívi­da cor­po­ra­ti­vas, atra­vés do pro­gra­ma de Cor­po­ra­te Sec­tor Pur­cha­se Pro­gram­me (CSPP). Ain­da no paco­te de medi­das de liqui­dez, a auto­ri­da­de mone­tá­ria euro­peia dese­nhou o Pan­de­mic Emer­gency Lon­ger-Term Refi­nan­cing Ope­ra­ti­on (PEL­TROs), um con­jun­to de ope­ra­ções com matu­ri­da­de para o segun­do semes­tre de 2021, nova­men­te com o intui­to de garan­tir liqui­dez de for­ma ampla (ECB, 2020b).

No Bra­sil, ape­sar do enfren­ta­men­to con­tur­ba­do da pan­de­mia, o Ban­co Cen­tral mais uma vez rea­fir­mou seu papel de garan­ti­dor de liqui­dez, esta­bi­li­da­de e do ple­no fun­ci­o­na­men­to do Sis­te­ma Finan­cei­ro Naci­o­nal. Enfren­tan­do a gigan­tes­ca pres­são por liqui­dez em dóla­res logo no iní­cio da pan­de­mia, o BC atu­ou no mer­ca­do de divi­sas com sua reser­va de moe­da estran­gei­ra na ordem de 20% do PIB. O Bacen tam­bém ope­rou atra­vés das já cita­das linhas de swap esta­be­le­ci­das pelo Fed, inje­tan­do cer­ca de US$ 60 bilhões (BCB, 2020). Outra medi­da de garan­tia de liqui­dez foram as ope­ra­ções de com­pra de títu­los sobe­ra­nos do Bra­sil deno­mi­na­dos em dólar (glo­bal bonds) em pos­se de ins­ti­tui­ções ban­cá­ri­as bra­si­lei­ras, medi­an­te a nego­ci­a­ção dos títu­los a pre­ços 10% mais bara­tos do que aque­les pra­ti­ca­dos comu­men­te no mer­ca­do, hou­ve a libe­ra­ção poten­ci­al de R$ 50 bilhões.

O Ban­co Cen­tral do Bra­sil tam­bém cri­ou a Linha Tem­po­rá­ria Espe­ci­al de Liqui­dez – Letras Finan­cei­ras Garan­ti­das (LTEL – LFG), uma linha de cré­di­to via­bi­li­za­da por emprés­ti­mos fei­tos a ins­ti­tui­ções ban­cá­ri­as, que teria como garan­tia letras finan­cei­ras par­ti­das das finan­cei­ras, com ren­di­men­to. Outra linha espe­ci­al de garan­tia de liqui­dez ini­ci­a­da duran­te a pan­de­mia se tra­ta da rea­li­za­ção de emprés­ti­mos las­tre­a­dos em debên­tu­res, ou seja, assim como o Fed e o BCE, o BCB pas­sou a acei­tar títu­los de dívi­da pri­va­da como con­tra­par­ti­da a emprés­ti­mos rea­li­za­dos pela instituição.

Além dis­so, a Medi­da Pro­vi­só­ria 992 garan­tiu mai­or liber­da­de ao Bacen nos ter­mos de finan­ci­a­men­to de micro e peque­nas empre­sas. A MP 992/2020 foi o pro­gra­ma de Capi­tal de Giro para Pre­ser­va­ção de Empre­sas (CGPE), que tinha como obje­ti­vo garan­tir liqui­dez para micro, peque­nas e médi­as empre­sas. A fon­te dos emprés­ti­mos foi a apli­ca­ção de dife­ren­ças fis­cais tem­po­rá­ri­as de ins­ti­tui­ções empres­ta­do­res sele­ci­o­na­das pelo Bacen. Des­sa for­ma, os emprés­ti­mos não ofe­re­ci­am nenhum ris­co fis­cal ou de esta­bi­li­da­de, dado que os recur­sos par­ti­ram com­ple­ta­men­te de ins­ti­tui­ções finan­cei­ras. A medi­da ape­nas exi­gia que os emprés­ti­mos fos­sem exclu­si­va­men­te dire­ci­o­na­dos a capi­tal de giro. Esti­ma-se que o capi­tal dis­po­ni­bi­li­za­do pela medi­da che­gue a R$ 120 bilhões.

Pode­mos resu­mir as medi­das ado­ta­das pelos três ban­cos cen­trais aqui ana­li­sa­dos, Ban­co Cen­tral do Bra­sil, Ban­co Cen­tral Euro­peu e Fede­ral Reser­ve, na tabe­la 1 abai­xo. Divi­di­mos as medi­das em con­ven­ci­o­nais, ou seja, aque­las que já esta­vam pre­sen­tes na “cai­xa de fer­ra­men­tas” das auto­ri­da­des mone­tá­ri­as antes dos perío­dos de cri­se, e as ino­va­do­ras, aque­las que foram desen­vol­vi­das duran­te as crises.

É ine­gá­vel que o cará­ter dis­tin­to das cri­ses exi­giu dife­ren­tes medi­das e níveis de atu­a­ção nos dois momen­tos de desa­jus­te econô­mi­co. Dife­ren­te­men­te da cri­se de 2008, que tinha raí­zes den­tro do pró­prio sis­te­ma finan­cei­ro ame­ri­ca­no, as con­sequên­ci­as da cri­se de 2020 ado­ta­ram pro­por­ções glo­bais, não haven­do medi­da a ser pro­mo­vi­da por ban­cos cen­trais que pudes­sem con­ter a dis­se­mi­na­ção do vírus e o pro­lon­ga­men­to da pandemia.

As Figu­ras 1, 2 e 3 demons­tram, res­pec­ti­va­men­te, o cres­ci­men­to das con­tas de ati­vos do Fede­ral Reser­ve, do Ban­co Cen­tral Euro­peu e do Ban­co Cen­tral do Bra­sil. É notá­vel que, em ambos os momen­tos cri­se, em espe­ci­al por par­te do Fed, exi­giu-se de ban­cos cen­trais atu­a­ção con­si­de­rá­vel em ter­mos mone­tá­ri­os. Além dis­so, a expan­são dos balan­ços das auto­ri­da­des mone­tá­ri­as mos­tra um cará­ter per­ma­nen­te, de for­ma que mes­mo depois de atin­gi­da a esta­bi­li­da­de, depois da cri­se de 2008, por exem­plo, a con­ta de ati­vos man­te­ve-se volumosa.

Ain­da, como apre­sen­ta­do por Ayres, Neu­meyer, Powell (2021), o Bra­sil apre­sen­tou uma expan­são mone­tá­ria (M2) con­si­de­ra­vel­men­te mais inten­sa que os demais paí­ses da Amé­ri­ca Lati­na. As polí­ti­cas ado­ta­das expan­di­ram o balan­ço de paga­men­tos do BCB para níveis pró­xi­mos ao de eco­no­mi­as desen­vol­vi­das, situ­an­do-se pró­xi­mo do cres­ci­men­to mone­tá­rio viven­ci­a­do pelos Esta­dos Unidos.

De for­ma geral, nota-se que o Ban­co Cen­tral do Bra­sil pro­cu­rou con­cen­trar seus esfor­ços, tan­to em 2008 quan­to em 2020, nos pila­res da polí­ti­ca mone­tá­ri­as cons­truí­da des­de mea­dos dos 1990. As medi­das pro­mo­vi­das pelo Bacen foca­ram nos ins­tru­men­tos con­ven­ci­o­nais de garan­tia de liqui­dez, como a redu­ção da taxa bási­ca juros. Com­pa­ra­ti­va­men­te, em ambas as cri­ses, tan­to o BCE quan­to o Fede­ral Reser­ve fize­ram uso de medi­das dis­rup­ti­vas, como inje­ções mas­si­vas de liqui­dez via com­pra de ativos.

Como apon­tam Har­tley e Rebuc­ci (2020), mes­mo entre as eco­no­mi­as emer­gen­tes, a auto­ri­da­de mone­tá­ria bra­si­lei­ra foi a úni­ca a não rea­li­zar qual­quer pro­gra­ma de quan­ti­ta­ti­ve easing (QE).

Do pon­to de vis­ta ins­ti­tu­ci­o­nal, como expos­to aci­ma, é pos­sí­vel ver que mui­tas das fer­ra­men­tas uti­li­za­das no enfren­ta­men­to da cri­se de 2008 foram incor­po­ra­dos na “cai­xa de fer­ra­men­tas” como meca­nis­mos de garan­tia de liqui­dez. No mes­mo sen­ti­do, a cri­se cau­sa­da pela Covid-19 pode ter impac­tos per­ma­nen­tes no com­por­ta­men­to de ban­cos cen­trais nos pró­xi­mos anos. Duran­te a pan­de­mia, o Bank of Japan e o Reser­ve Bank of Aus­tra­lia, auto­ri­da­des mone­tá­ri­as japo­ne­sa e aus­tra­li­a­na, res­pec­ti­va­men­te, ado­ta­ram um novo regi­me de juros conhe­ci­do como Yield Cur­ve Con­trol (YCC), mode­lo em que o ban­co cen­tral esta­be­le­ce uma meta de juros de lon­go pra­zo e ope­ra atra­vés de títu­los de lon­ga matu­ra­ção, tor­nan­do assim mais fácil aque­cer a eco­no­mia a cur­to pra­zo, mes­mo se juros zera­dos não sur­ti­rem mais efei­to (Belz e Wes­sel, 2020), em opo­si­ção ao até então bem esta­be­le­ci­do Regi­me de Metas de Infla­ção.

Ain­da que, como apon­ta Too­ze (2020b), o Fede­ral Reser­ve não tenha de fato assu­mi­do pro­pri­a­men­te um regi­me de YCC, o ban­co cen­tral ame­ri­ca­no ado­tou, em agos­to de 2020, uma nova estra­té­gia: a meta de infla­ção, no caso da eco­no­mia ame­ri­ca­na defi­ni­da para 2%, seria a média das taxas de infla­ção no lon­go pra­zo (Fede­ral Reser­ve, 2020). O novo mode­lo per­mi­ti­ria, por­tan­to, esta­be­le­cer medi­das mais arro­ja­das de estí­mu­lo à eco­no­mia (isto é, pro­vo­car no cur­to pra­zo mai­o­res pres­sões infla­ci­o­ná­ri­as), com­pen­san­do com perío­dos de infla­ção mais bai­xa, sem impli­car em des­vi­os da meta de infla­ção de lon­go prazo.

Nes­se sen­ti­do, a pan­de­mia pode ter pro­vo­ca­do, no con­tex­to mone­tá­rio, impac­tos ins­ti­tu­ci­o­nais mar­can­tes, desa­fi­an­do o Regi­me de Metas de Infla­ção, mode­lo que ori­en­ta des­de 1990 o con­tro­le dos juros e infla­ção de eco­no­mi­as desen­vol­vi­das e emer­gen­tes (no Bra­sil, o RMI foi ado­ta­do em 1999).

Tabe­la 1 e figu­ras 1, 2, 3 e 4

 

Referências bibliográficas

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