Crise, fragmentação e desigualdade: obstáculos para o acesso à saúde na América Latina

A Amé­ri­ca Lati­na (AL), se con­si­de­ra­da sob a pers­pec­ti­va da con­cen­tra­ção de ren­da, é a região mais desi­gual do mun­do (FMI, 2014). Entre os impac­tos adver­sos de soci­e­da­des alta­men­te desi­guais, con­si­de­ra-se a pos­si­bi­li­da­de de limi­ta­ção do mer­ca­do inter­no con­su­mi­dor que pode, por sua vez, redu­zir o poten­ci­al de cres­ci­men­to econô­mi­co1Os estra­tos supe­ri­o­res da dis­tri­bui­ção sala­ri­al ten­dem a pou­par uma par­ce­la mai­or de sua ren­da do que os estra­tos infe­ri­o­res. De tal for­ma, a con­cen­tra­ção de ren­da pode gerar impac­tos nega­ti­vos sobre a deman­da agre­ga­da, redu­zin­do a taxa de cres­ci­men­to de deter­mi­na­da eco­no­mia (Car­va­lho e Rezai, 2016).. Além dis­so, outros fato­res como ten­sões soci­ais e níveis de pobre­za são afe­ta­dos pela desi­gual­da­de de ren­da, sen­do que o cres­ci­men­to econô­mi­co neces­sá­rio para a redu­ção da pobre­za pas­sa a ser mai­or dian­te de uma eco­no­mia mais desi­gual, e que ele­va­dos níveis de vio­lên­cia ten­dem a per­sis­tir em soci­e­da­des mais desi­guais (Imbus­ch et al., 2011).

Goñi, López e Ser­vén (2011) com­pa­ram a desi­gual­da­de de ren­da lati­no-ame­ri­ca­na com a euro­peia. Os auto­res encon­tram que gran­de par­te da dife­ren­ça na desi­gual­da­de exis­ten­te entre as duas regiões pode ser atri­buí­da ao bai­xo poder redis­tri­bu­ti­vo dos sis­te­mas fis­cais lati­no-ame­ri­ca­nos que, em geral, pos­su­em car­ga tri­bu­tá­ria rela­ti­va­men­te redu­zi­da e estru­tu­ra regres­si­va, além de trans­fe­rên­ci­as gover­na­men­tais pou­co foca­li­za­das, altos níveis de eli­são fis­cal e bases tri­bu­tá­ri­as “acha­ta­das“2Um gran­de volu­me de ren­da é pou­co ou nada tri­bu­ta­do, como ocor­re com os divi­den­dos no Bra­sil..

Ade­mais, a AL pare­ce ter bai­xa mobi­li­da­de soci­al. Con­si­de­ran­do a desi­gual­da­de de ren­da inter­ge­ra­ci­o­nal, Tor­che (2014) veri­fi­ca que há pou­ca mobi­li­da­de na base e no topo da pirâ­mi­de dis­tri­bu­ti­va, redu­zin­do o peso do méri­to indi­vi­du­al nas con­quis­tas pes­so­ais e ele­van­do o peso que a heran­ça fami­li­ar pos­sui nes­te papel. Isto ocor­re devi­do a fato­res como res­pos­tas com­pe­ti­ti­vas das clas­ses domi­nan­tes para man­ter as gera­ções futu­ras bem posi­ci­o­na­das soci­al­men­te, exis­tên­cia de bar­rei­ras à entra­da e manu­ten­ção de vín­cu­los como redes de con­ta­to – que pos­su­em um papel deci­si­vo na alo­ca­ção de indi­ví­du­os em pos­tos no mer­ca­do de tra­ba­lho. Este tipo de desi­gual­da­de, de tal for­ma, atua como uma estru­tu­ra de incen­ti­vos per­ver­sos, dado que a igual­da­de de opor­tu­ni­da­des é um estí­mu­lo ao esfor­ço indi­vi­du­al que, no limi­te, faz com que a soci­e­da­de seja mais jus­ta e produtiva.

As desi­gual­da­des na Amé­ri­ca Lati­na, no entan­to, não se limi­tam ao esco­po das ren­das. Outro aspec­to impor­tan­te des­se pon­to de vis­ta é a exis­tên­cia de sis­te­mas de saú­de frag­men­ta­dos (tabe­la 1) e de base con­tri­bu­ti­va, pos­suin­do como pré-con­di­ção para o aces­so algu­ma espé­cie de con­tri­bui­ção pecu­niá­ria. Dmy­trac­zen­ko e Almei­da (2015) obser­vam que his­to­ri­ca­men­te a mai­o­ria dos paí­ses da AL man­te­ve sis­te­mas de duas cama­das: um para os empre­ga­dos do setor for­mal e outro, pro­vi­do pelos Minis­té­ri­os da Saú­de, para os mais pobres e que não estão segu­ra­dos. Con­si­de­ran­do o ele­va­do grau de infor­ma­li­da­de nos mer­ca­dos de tra­ba­lho dos paí­ses da região, este sis­te­ma de duas cama­das difi­cul­ta não só o aces­so como reduz a cober­tu­ra que envol­ve os cui­da­dos com saú­de, repro­du­zin­do o padrão de desi­gual­da­de da região.

Tabe­la 1 – Tipo de sis­te­ma de saú­de e seg­men­ta­ção na Amé­ri­ca Latina

 

PaísTipos de sis­te­mas de saú­de (clas­si­fi­ca­dos por fon­tes de financiamento)

 

Inte­gra­ção da segu­ri­da­de soci­al e do sis­te­ma público
Argen­ti­na 

Tri­par­ti­te: públi­co, segu­ro soci­al e privado.

 

Seg­men­ta­do
Bolí­via 

Tri­par­ti­te: públi­co, segu­ro soci­al e privado.

 

Seg­men­ta­do
Bra­sil 

Dual: públi­co (três níveis) e pri­va­do (prin­ci­pal­men­te suplementar)

 

Inte­gra­do.
Chi­le 

Dual: públi­co ou segu­ro soci­al e privado.

 

Inte­gra­do.
Colôm­bia 

Tri­par­ti­te: públi­co ou segu­ro soci­al sub­si­di­a­do, segu­ro soci­al con­tri­bu­ti­vo e privado.

 

Inte­gra­ção sob implementação.
Cos­ta Rica 

Dual: segu­ro soci­al e pri­va­do (peque­no), com a regu­la­ção e a admi­nis­tra­ção públicas.

 

Inte­gra­do.
Cuba 

Úni­co: públi­co (não há privado).

 

Inte­gra­do.
Equa­dor 

Tri­par­ti­te: públi­co, segu­ro soci­al (com segu­ro rural) e privado.

 

Seg­men­ta­do.
El Sal­va­dor 

Tri­par­ti­te: públi­co, segu­ro soci­al e privado.

 

Seg­men­ta­do.
Gua­te­ma­la 

Tri­par­ti­te: públi­co, segu­ro soci­al e pri­va­do (incluin­do ONGs).

 

Seg­men­ta­do.
Hai­ti 

Dual: públi­co e pri­va­do (de três tipos).

 

Seg­men­ta­do.
Hon­du­ras 

Tri­par­ti­te: públi­co, segu­ro soci­al e privado.

 

Seg­men­ta­do.
Méxi­co 

Tri­par­ti­te: públi­co, segu­ro soci­al e privado.

 

Seg­men­ta­do.
Nica­rá­gua 

Tri­par­ti­te: públi­co, segu­ro soci­al (por meio do setor pri­va­do) e privado.

 

Seg­men­ta­do.
Pana­má 

Tri­par­ti­te: públi­co, segu­ro soci­al e privado.

 

Seg­men­ta­do.
Para­guai 

Tri­par­ti­te: públi­co, segu­ro soci­al e privado.

 

Seg­men­ta­do.
Peru 

Tri­par­ti­te: públi­co, segu­ro soci­al e privado.

 

Seg­men­ta­do.
Repú­bli­ca Dominicana 

Tri­par­ti­te: públi­co, segu­ro soci­al e privado.

 

Inte­gra­ção sob implementação.
Uru­guai 

Dual: públi­co ou segu­ro soci­al, e pri­va­do (peque­no).

 

Inte­gra­do.
Vene­zu­e­la 

Tri­par­ti­te: públi­co, segu­ro soci­al e privado.

 

Seg­men­ta­do.

Fon­te: Cotle­ar et al. (2015). Ela­bo­ra­ção Própria.

 

Nes­te sen­ti­do, para tor­nar uni­ver­sal a cober­tu­ra e o aces­so à saú­de públi­ca, há a neces­si­da­de de um rede­se­nho des­ses sis­te­mas. Em alguns casos, como no Bra­sil, o mode­lo atu­al é aque­le base­a­do em hos­pi­tais para o tra­ta­men­to de infec­ções agu­das e/ou trau­mas, sen­do alta­men­te cus­to­so e cons­truí­do com base no padrão epi­de­mi­o­ló­gi­co de mea­dos do sécu­lo XX. Nes­sa épo­ca, o pro­ces­so de urba­ni­za­ção e a pre­va­lên­cia de doen­ças infec­to-para­si­tá­ri­as fize­ram com que os recur­sos fos­sem dire­ci­o­na­dos ao tra­ta­men­to e ao com­ba­te de infec­ções agu­das e, por­tan­to, à imu­ni­za­ção e à cons­tru­ção de hos­pi­tais. Recen­te­men­te, o padrão epi­de­mi­o­ló­gi­co é outro e entre as rele­van­tes cau­sas de mor­te na AL estão as doen­ças crô­ni­cas não-trans­mis­sí­veis, os aci­den­tes para os homens e os inci­den­tes3Deri­va­dos da vio­lên­cia domés­ti­ca, por exem­plo.para as mulhe­res (PAHO, 2017). Por­tan­to, um novo mode­lo de cui­da­dos com saú­de deve con­si­de­rar essas ques­tões e, ain­da, bus­car a ele­va­ção do nível de bem-estar dos indi­ví­du­os e a ade­qua­ção à tran­si­ção demo­grá­fi­ca, além de visar expan­são dos sis­te­mas de saú­de, ampli­a­ção da efi­ci­ên­cia e redu­ção da desi­gual­da­de de acesso.

O pro­ble­ma da seg­men­ta­ção é ilus­tra­do por Lloyd-Sher­lock (2009) que, ana­li­san­do o caso do Méxi­co, veri­fi­ca que o prin­ci­pal fun­do de segu­ri­da­de da saú­de rece­be um ter­ço de seu orça­men­to anu­al via trans­fe­rên­cia gover­na­men­tal, com­ple­men­tan­do a par­ce­la dos recur­sos rece­bi­dos a par­tir da con­tri­bui­ção dos tra­ba­lha­do­res e dos empre­ga­do­res. De acor­do com o autor, os fun­dos de saú­de públi­ca – que pos­su­em base con­tri­bu­ti­va – cobrem ape­nas 40% da popu­la­ção mexi­ca­na e somen­te 10% do quin­til mais pobre. Assim, a ausên­cia de um sis­te­ma uni­ver­sal e inte­gra­do, con­si­de­ran­do a gran­de repre­sen­ta­ti­vi­da­de do setor infor­mal na AL, aca­ba geran­do redu­zi­da foca­li­za­ção no gas­to soci­al dire­ci­o­na­do à saú­de, dei­xan­do os mais pobres sem aces­so ao sistema.

Ade­mais, mes­mo quan­do os gru­pos mais pobres são cober­tos pelo direi­to à saú­de, eles encon­tram uma série de bar­rei­ras para aces­sar esses cui­da­dos. A impo­si­ção de tari­fas aos usuá­ri­os, os ele­va­dos cus­tos de trans­por­te para os mora­do­res das zonas rurais4Dado que a infra­es­tru­tu­ra de ser­vi­ços de saú­de está prin­ci­pal­men­te ins­ta­la­da nos cen­tros urba­nos mais ricos den­tro des­tes paí­ses, além dos cus­tos de opor­tu­ni­da­de (como per­da de um dia de tra­ba­lho), difi­cul­tam o aces­so dos estra­tos infe­ri­o­res da dis­tri­bui­ção de ren­da à saú­de. Isso é agra­va­do por um mode­lo base­a­do em inter­ven­ções cura­ti­vas e pro­ce­di­men­tos de mai­or com­ple­xi­da­de que, além de serem mais cus­to­sos, ten­dem a “expul­sar” os mais pobres.

Logo, con­si­de­ran­do alguns paí­ses da região, a tran­si­ção de um mode­lo de base con­tri­bu­ti­va com sub­sí­di­os cru­za­dos para um sis­te­ma de saú­de uni­ver­sal5Como ocor­re no Bra­sil, na Cos­ta Rica e em Cuba e inte­gra­do é con­di­ção indis­pen­sá­vel para a redu­ção da desi­gual­da­de de aces­so à saú­de. Além dis­so, o dire­ci­o­na­men­to para um mode­lo foca­do em cui­da­dos bási­cos e cen­tra­do nas pes­so­as e nas comu­ni­da­des, ain­da que pon­de­ra­do para con­si­de­rar hete­ro­ge­nei­da­des, deve ser a regra para a tota­li­da­de dos paí­ses latino-americanos.

A pre­ven­ção de doen­ças car­di­or­res­pi­ra­tó­ri­as e de pro­ble­mas de saú­de men­tal – que pas­sa­ram a ter mai­or pre­va­lên­cia na AL – deve se base­ar na visão de saú­de sob a pers­pec­ti­va de ciclo de vida e em equi­pes mul­ti­dis­ci­pli­na­res para o acom­pa­nha­men­to das comu­ni­da­des. Com um mode­lo de medi­ci­na da famí­lia que envol­va edu­ca­do­res físi­cos, psi­có­lo­gos, enfer­mei­ros, entre outros pro­fis­si­o­nais, é pos­sí­vel acom­pa­nhar de for­ma menos cus­to­sa e pre­ve­nir de for­ma mais efe­ti­va o apa­re­ci­men­to de doen­ças crô­ni­cas em paci­en­tes, além de miti­gar a neces­si­da­de de infra­es­tru­tu­ras físi­cas de ele­va­do cus­to, que é o caso dos hos­pi­tais. A moder­ni­za­ção tec­no­ló­gi­ca e a inte­gra­ção dos sis­te­mas de infor­ma­ção refe­ren­tes à saú­de públi­ca são indis­pen­sá­veis nes­te pro­ces­so, tor­nan­do o sis­te­ma como um todo e as inter­ven­ções mais inte­li­gen­tes e eficientes.

Tabe­la 2 – Pers­pec­ti­va com­pa­ra­ti­va das car­gas tributárias

RegiãoImpos­to sobre pes­so­as físicasImpos­to sobre corporaçõesImpos­to sobre valor agregado
Les­te Asiá­ti­co e Pacífico 

33.5%

 

31.5%10%
Amé­ri­ca Lati­na e Caribe 

29%

 

26.6%15%
Ori­en­te Médio e Nor­te da África 

48%

 

40%17%
OCDE 

45%

 

35%17.25%
Sul da Ásia 

39.5%

 

41%15%
Áfri­ca Subsaariana 

38%

 

36%17.5%

Fon­te: Goñi et al. (2011). Ela­bo­ra­ção própria.

* Os núme­ros são médi­as dos gru­pos (das alí­quo­tas mais ele­va­das no caso dos impos­tos sobre ren­da de pes­so­as físi­cas e de cor­po­ra­ções) e se refe­rem ao últi­mo ano disponível.

O finan­ci­a­men­to de tais medi­das per­pas­sa por uma expan­são dos gas­tos dire­ci­o­na­dos ao setor (Paho, 2017) e, por con­sequên­cia, por uma ele­va­ção da arre­ca­da­ção de deter­mi­na­dos tipos de tri­bu­tos, con­si­de­ran­do a dis­pa­ri­da­de da AL em rela­ção às outras regiões do mun­do (tabe­la 2). Saben­do-se do pro­ble­ma da con­cen­tra­ção dos ren­di­men­tos, o cri­té­rio-cha­ve para a ele­va­ção da arre­ca­da­ção deve ser a pro­gres­si­vi­da­de tri­bu­tá­ria, dire­ci­o­nan­do-se às ren­das mais ele­va­das seja pela cri­a­ção de novas fai­xas de impos­to de ren­da pes­soa físi­ca ou pela intro­du­ção de novos tri­bu­tos – sobre divi­den­dos, por exem­plo, no caso bra­si­lei­ro. Ade­mais, a moder­ni­za­ção tec­no­ló­gi­ca e o rede­se­nho do sis­te­ma para con­si­de­rar a tran­si­ção demo­grá­fi­ca e epi­de­mi­o­ló­gi­ca, vol­tan­do-se aos cui­da­dos pri­má­ri­os, devem cum­prir papel fun­da­men­tal na melho­ria da qua­li­da­de e da efi­ci­ên­cia dos gas­tos com saúde.

Referências bibliográficas

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