Os rentistas no conflito distributivo brasileiro e a economia política da crise recente

Duran­te par­te sig­ni­fi­ca­ti­va das duas últi­mas déca­das, a eco­no­mia bra­si­lei­ra atra­ves­sou um ciclo de cres­ci­men­to econô­mi­co com dis­tri­bui­ção de ren­da que teve como carac­te­rís­ti­ca uma ampli­a­ção do cré­di­to ao con­su­mo. Por mais que este ciclo tenha tra­zi­do bene­fí­ci­os para amplos seto­res da soci­e­da­de, é fun­da­men­tal reco­nhe­cer que ele apro­fun­dou os con­fli­tos sobre a dis­tri­bui­ção da ren­da naci­o­nal. O Wor­king Paper nº 002 do Made, inti­tu­la­do “Wor­kers’ Indeb­ted­ness and Ren­ti­er Sque­e­ze: ren­ti­er inco­me, pro­fit of enter­pri­se and wages in Bra­sil (2000–2017)”, ana­li­sa as par­ti­cu­la­ri­da­des des­se con­fli­to dis­tri­bu­ti­vo sob uma óti­ca tri­par­ti­te, con­si­de­ran­do uma eco­no­mia for­ma­da por tra­ba­lha­do­res, capi­ta­lis­tas do setor não-finan­cei­ro e capi­ta­lis­tas do setor finan­cei­ro (ren­tis­tas). A prin­ci­pal con­tri­bui­ção do arti­go – isto é, a inclu­são dos ren­tis­tas enquan­to ter­cei­ro polo no con­fli­to dis­tri­bu­ti­vo – per­mi­te não ape­nas rea­va­li­ar a tra­je­tó­ria da dis­tri­bui­ção fun­ci­o­nal da ren­da no Bra­sil con­si­de­ran­do a dimen­são da dis­pu­ta inter­ca­pi­ta­lis­ta pelos lucros apro­pri­a­dos, mas tam­bém refle­tir sobre as con­tra­di­ções pro­du­zi­das pelo ciclo econô­mi­co recen­te à luz das espe­ci­fi­ci­da­des da finan­cei­ri­za­ção bra­si­lei­ra contemporânea. 

É nes­sa dire­ção que apon­tam os resul­ta­dos obser­va­dos em rela­ção à tra­je­tó­ria das três par­ce­las da ren­da naci­o­nal (wage sha­re, pro­fit of enter­pri­se sha­re e ren­ti­er sha­re) refe­ren­tes às três cate­go­ri­as men­ci­o­na­das (tra­ba­lha­do­res, capi­ta­lis­tas do setor não-finan­cei­ro e ren­tis­tas, res­pec­ti­va­men­te)1Excluin­do o gover­no, a ren­da naci­o­nal bru­ta da eco­no­mia bra­si­lei­ra para o perío­do entre 2000 e 2017 foi divi­di­da entre ren­da do tra­ba­lho (salá­ri­os e par­te do ren­di­men­to mis­to bru­to sub­traí­dos do paga­men­to de juros das famí­li­as), ren­da das empre­sas não-finan­cei­ras (lucros não-finan­cei­ros e par­te do ren­di­men­to mis­to bru­to menos as ren­das de pro­pri­e­da­de pagas pelo setor pri­va­do não-finan­cei­ro) e ren­da dos ren­tis­tas (lucros do setor finan­cei­ro, ren­das de pro­pri­e­da­de do setor finan­cei­ro e juros rece­bi­dos pelas famí­li­as). As par­ti­cu­la­ri­da­des do méto­do e suas limi­ta­ções estão des­cri­tas na seção 2 do arti­go.. A aná­li­se do perío­do mos­tra que hou­ve, com efei­to, um aumen­to sig­ni­fi­ca­ti­vo do ren­ti­er sha­re. Essa ele­va­ção se deu prin­ci­pal­men­te entre 2004 e 2011 (o ren­ti­er sha­re foi de 8,82% para 14,08% da ren­da naci­o­nal) e foi carac­te­ri­za­da por uma alte­ra­ção em seus com­po­nen­tes: hou­ve um ganho de impor­tân­cia dos juros rece­bi­dos pelas famí­li­as bra­si­lei­ras em detri­men­to dos ren­di­men­tos do setor finan­cei­ro. Entre 2011 e 2013, entre­tan­to, o ren­ti­er sha­re sofreu uma que­da ace­le­ra­da, atin­gin­do o seu pon­to mais bai­xo des­de 2004. Essa per­da de par­ti­ci­pa­ção dos ren­tis­tas foi rapi­da­men­te rever­ti­da: já em 2015, a ele­va­ção da par­ti­ci­pa­ção rela­ti­va dos ren­di­men­tos das empre­sas finan­cei­ras e dos juros rece­bi­dos pelas famí­li­as já havi­am pos­si­bi­li­ta­do que o ren­ti­er sha­re recu­pe­ras­se o seu pata­mar de 2011. 

As con­tra­par­ti­das des­sa tra­je­tó­ria são impor­tan­tes para com­pre­en­der a dinâ­mi­ca do con­fli­to dis­tri­bu­ti­vo bra­si­lei­ro ao lon­go des­ses dezes­se­te anos. Con­for­me apon­ta o Grá­fi­co 1, a ele­va­ção do ren­ti­er sha­re entre 2004 e 2011 se refle­tiu tan­to em uma estag­na­ção da par­ce­la da ren­da apro­pri­a­da pelos capi­ta­lis­tas não-ren­tis­tas (pro­fit of enter­pri­se sha­re) quan­to em uma que­da da par­ce­la da ren­da apro­pri­a­da pelos tra­ba­lha­do­res (wage sha­re). Esse resul­ta­do sur­pre­en­de, uma vez que é sabi­do que o perío­do foi mar­ca­do por um aumen­to dos ganhos sala­ri­ais reais. Estes se devem, em par­te, a polí­ti­cas econô­mi­cas de cará­ter dis­tri­bu­ti­vo, como é o caso das ele­va­ções perió­di­cas no salá­rio míni­mo. Ade­mais, a tra­je­tó­ria do wage sha­re obti­da por meio da óti­ca tri­par­ti­te con­tras­ta com uma série de outras aná­li­ses da dis­tri­bui­ção fun­ci­o­nal da ren­da bra­si­lei­ra para o mes­mo perío­do (Rugitsky, 2017; Sara­ma­go, Frei­tas e Medei­ros, 2018; Mar­tins; Rugitsky, 2018). Nes­sas inter­pre­ta­ções, o wage sha­re bra­si­lei­ro se mos­tra em ascen­dên­cia duran­te o perío­do, prin­ci­pal­men­te como resul­ta­do des­sas polí­ti­cas distributivas. 

Fon­te: CEI/SCN/IBGE. Ela­bo­ra­ção própria

De fato, ao aten­tar para os com­po­nen­tes do wage sha­re, nota-se que sua que­da não se deve à exis­tên­cia de per­das sala­ri­ais. Se con­si­de­ra­da ape­nas a par­ce­la da ren­da refe­ren­te às remu­ne­ra­ções dos tra­ba­lha­do­res, há um aumen­to do wage sha­re no perío­do em ques­tão. Na ver­da­de, a redu­ção veri­fi­ca­da no wage sha­re se deve a um efei­to redis­tri­bu­ti­vo que decor­re da inclu­são, em seu cál­cu­lo, de dedu­ções refe­ren­tes aos paga­men­tos de juros por par­te dos tra­ba­lha­do­res. Em outras pala­vras, a esti­ma­ção do wage sha­re pro­pos­ta leva em con­si­de­ra­ção o fenô­me­no da expro­pri­a­ção finan­cei­ra, que con­sis­te, resu­mi­da­men­te, na obten­ção de lucros finan­cei­ros dire­ta­men­te da ren­da pes­so­al dos tra­ba­lha­do­res, por meio do endi­vi­da­men­to fami­li­ar e do paga­men­to de juros. Esse fenô­me­no, típi­co dos pro­ces­sos de finan­cei­ri­za­ção das eco­no­mi­as con­tem­po­râ­ne­as, é fator cen­tral na expli­ca­ção de como os ganhos sala­ri­ais reais aca­bam se tra­du­zin­do em um wage sha­re menor. Por outro lado, é pos­sí­vel suge­rir que ele tam­bém expli­ca, em par­te, a ele­va­ção do ren­ti­er sha­re, seguin­do a hipó­te­se de que o aumen­to do endi­vi­da­men­to fami­li­ar dire­ci­o­na o flu­xo de juros no sen­ti­do de ampli­ar a desi­gual­da­de de ren­da entre os mais ricos e os mais pobres (Dos San­tos, 2013). 

Uma vez con­si­de­ra­dos esses resul­ta­dos, é pos­sí­vel pro­por algu­mas con­tri­bui­ções em rela­ção às dinâ­mi­cas de eco­no­mia polí­ti­ca no Bra­sil recen­te. O pon­to de par­ti­da teó­ri­co é o ensaio clás­si­co de Michal Kalec­ki (1943) sobre os “Aspec­tos Polí­ti­cos do Ple­no Empre­go”2O tex­to tra­du­zi­do está dis­po­ní­vel em: https://jacobin.com.br/2020/09/aspectos-politicos-do-pleno-emprego .Nele, o eco­no­mis­ta suge­re que as ten­sões entre capi­ta­lis­tas e tra­ba­lha­do­res ten­dem a se apro­fun­dar à medi­da que a eco­no­mia se apro­xi­ma do ple­no empre­go e aumen­tam as pres­sões por mai­o­res remu­ne­ra­ções sala­ri­ais. Nes­se con­tex­to, os capi­ta­lis­tas ten­dem a se opor a polí­ti­cas econô­mi­cas de manu­ten­ção do ple­no empre­go e, se neces­sá­rio, a atu­ar poli­ti­ca­men­te no sen­ti­do de impe­dir situ­a­ções des­sa natu­re­za. Kalec­ki lem­bra, toda­via, que as rea­ções podem ser dife­ren­tes a depen­der das fra­ções da clas­se capi­ta­lis­ta. Em situ­a­ções de pres­são por ele­va­ção sala­ri­al, a fra­ção dos capi­ta­lis­tas não-finan­cei­ros pode ten­tar sus­ten­tar sua par­ce­la na dis­tri­bui­ção de ren­da por meio de uma ele­va­ção dos pre­ços, repas­san­do o aumen­to dos cus­tos de pro­du­ção. Essa ele­va­ção de pre­ços aca­ba­ria afe­tan­do os capi­ta­lis­tas da fra­ção ren­tis­ta, a quem res­ta­ria uma par­ce­la menor da ren­da asso­ci­a­da ao capi­tal. Nes­se caso, o setor não-finan­cei­ro só con­se­gue pre­ser­var sua posi­ção na ren­da naci­o­nal por meio da pena­li­za­ção dos ren­tis­tas3A pon­de­ra­ção pos­ta por Kalec­ki foi explo­ra­da em tra­ba­lhos sub­se­quen­tes, que des­ta­cam não ape­nas a dimen­são dos pre­ços, mas tam­bém a impor­tân­cia do valor da taxa de juros nomi­nal, isto é, o papel cum­pri­do pela polí­ti­ca mone­tá­ria. Essa dis­cus­são é apre­sen­ta­da na seção 1 do arti­go.

Em algum grau, este deba­te pro­pos­to por Kalec­ki per­pas­sa as inter­pre­ta­ções sobre as razões da cri­se econô­mi­ca bra­si­lei­ra que teve iní­cio a par­tir de 2014 e que foi mar­ca­da, poli­ti­ca­men­te, pelo pro­ces­so de impe­a­ch­ment de Dil­ma Rous­seff em 2016. Ape­sar das con­tro­vér­si­as em rela­ção às for­mas assu­mi­das pelo con­fli­to de clas­se no perío­do, vári­as abor­da­gens con­ver­gem ao reco­nhe­cer que a atu­a­ção do setor finan­cei­ro-ren­tis­ta cum­priu um papel espe­cí­fi­co no decor­rer dos even­tos polí­ti­cos da épo­ca, sen­do que essa par­ti­ci­pa­ção pode ter sido esti­mu­la­da por uma redu­ção da ren­da des­te setor4Algu­mas des­tas inter­pre­ta­ções são as pro­pos­tas em Boi­to Jr. (2018), Car­va­lho (2018), Ser­ra­no e Sum­ma (2018), Sin­ger (2018), Mar­tins e Rugitsky (2018)..

Ten­do esse deba­te em men­te e com base nas ten­sões des­cri­tas por Kalec­ki, a tra­je­tó­ria da dis­tri­bui­ção tri­par­ti­te da ren­da entre 2000 e 2017 per­mi­te algu­mas refle­xões. Pri­mei­ro, a fra­ção dos capi­ta­lis­tas do setor não-finan­cei­ro pare­ce ter sido capaz de resis­tir à pres­são pro­mo­vi­da pelos ganhos sala­ri­ais, mes­mo com uma redu­ção con­si­de­rá­vel do desem­pre­go na eco­no­mia. Curi­o­sa­men­te, tal esta­bi­li­da­de da ren­da do setor não-finan­cei­ro não se mani­fes­tou em um pre­juí­zo sobre o ren­ti­er sha­re até 2011, mes­mo com a taxa de juros real em que­da. Tal obser­va­ção suge­re que os ren­tis­tas, assim como os capi­ta­lis­tas do setor não-finan­cei­ro, tam­bém con­se­gui­ram (duran­te algum perío­do) repas­sar os cus­tos das ele­va­ções sala­ri­ais (além de com­pen­sar os efei­tos da que­da das taxas de juros). O meca­nis­mo res­pon­sá­vel por isso teria sido a ele­va­ção do endi­vi­da­men­to dos tra­ba­lha­do­res e o aumen­to dos paga­men­tos de juros por par­te das famí­li­as, decor­rên­ci­as da expan­são do mer­ca­do de cré­di­to que foi dire­ci­o­na­da espe­ci­al­men­te às cama­das mais pobres da popu­la­ção (Lavi­nas, 2017; Gar­ber et al, 2018), isto é, a expro­pri­a­ção finan­cei­ra. Na prá­ti­ca, por­tan­to, as pres­sões sala­ri­ais aca­ba­ram retor­nan­do aos pró­pri­os tra­ba­lha­do­res na for­ma de cobran­ça de juros. 

É pre­ci­so, toda­via, olhar com mais cui­da­do para o perío­do entre 2012 e 2013, em que o ren­ti­er sha­re sofreu uma for­te que­da, con­tras­tan­do com sua tra­je­tó­ria ao lon­go de toda a déca­da ante­ri­or. De cer­ta for­ma, essa mudan­ça pare­ce anun­ci­ar as múl­ti­plas cri­ses mani­fes­ta­das a par­tir de 2014. Em um con­tex­to de for­te inten­si­fi­ca­ção das mani­fes­ta­ções sin­di­cais e aper­to no mer­ca­do de tra­ba­lho, de pres­são sobre os spre­ads do setor finan­cei­ro e de que­da da taxa de juros, pare­ce que os ren­tis­tas enfim se mos­tra­ram inca­pa­zes de con­ti­nu­ar repas­san­do as pres­sões dis­tri­bu­ti­vas para os tra­ba­lha­do­res. A esta­bi­li­za­ção do endi­vi­da­men­to fami­li­ar e a desa­ce­le­ra­ção do cres­ci­men­to dos juros pagos pelas famí­li­as pare­cem ter sido cen­trais para que os ganhos via expro­pri­a­ção finan­cei­ra não fos­sem sufi­ci­en­te­men­te altos para com­pen­sar a que­da na taxa de juros e a redu­ção dos spre­ads. Nes­se bre­ve perío­do, por­tan­to, é pos­sí­vel suge­rir a ocor­rên­cia de um ren­ti­er sque­e­ze, isto é, uma pena­li­za­ção dos ren­tis­tas bra­si­lei­ros pro­vo­ca­da pelo con­fli­to dis­tri­bu­ti­vo. A iden­ti­fi­ca­ção de tal ren­ti­er sque­e­ze con­tri­bui para a com­pre­en­são da espe­ci­fi­ci­da­de do acir­ra­men­to do con­fli­to dis­tri­bu­ti­vo que abri­ria o cami­nho para a cri­se subsequente.

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