Por que a desvalorização do Real em 2020 não serve como defesa do teto?
Com cada vez mais frequência no debate econômico tem-se utilizado a forte desvalorização do Real em 2020 como justificativa para a manutenção do teto de gastos. O argumento é de que frente ao crescimento das despesas com o enfrentamento à pandemia e rumores de uma mudança do regime fiscal, aumentou a percepção de risco do país, levando a uma retração nos fluxos de capitais e, portanto, a uma desvalorização da moeda doméstica e a consequentes pressões inflacionárias. A narrativa da preponderância fiscal na determinação do câmbio vem acompanhada do dado de que o Real foi a moeda emergente que mais se desvalorizou em 2020. Assumindo, portanto, que o gap observado entre as oscilações da moeda brasileira e de outros países emergentes se deve às incertezas quanto ao cenário fiscal brasileiro.
Com cada vez mais frequência no debate econômico tem-se utilizado a forte desvalorização do Real em 2020 como justificativa para a manutenção do teto de gastos. O argumento é de que frente ao crescimento das despesas com o enfrentamento à pandemia e rumores de uma mudança do regime fiscal, aumentou a percepção de risco do país, levando a uma retração nos fluxos de capitais e, portanto, a uma desvalorização da moeda doméstica e a consequentes pressões inflacionárias. A narrativa da preponderância fiscal na determinação do câmbio vem acompanhada do dado de que o Real foi a moeda emergente que mais se desvalorizou em 2020. Assumindo, portanto, que o gap observado entre as oscilações da moeda brasileira e de outros países emergentes se deve às incertezas quanto ao cenário fiscal brasileiro.
Dessa forma, se for o objetivo da política econômica garantir uma maior estabilidade cambial e simultaneamente realizar uma política monetária autônoma — no nosso caso, manter o juro baixo — caberá à política fiscal ancorar as expectativas dos agentes para, via prêmio de risco, sustentar o Real. Caso contrário, teríamos que arcar com uma subida do juros para garantir o influxo de capitais 1Embora caminhem no sentido de uma dominância fiscal em que a descrença na capacidade de geração de superávits no futuro desloca os agentes dos títulos públicos para ativos externos, os profetas da crise fiscal deslizam ao colocar como saída alternativa a elevação dos juros. Como argumentam Maurício Furtado e Ricardo Barbosa em artigo para a Folha de São Paulo, caso estejamos neste ponto em que a direção está sob a política fiscal, subir os juros apenas atrapalharia o ajuste, elevando a descrença quanto à solvência do governo..
Do ponto de vista teórico o argumento de que o mercado estaria punindo os desvios do executivo não é necessariamente novo. A própria adoção no final dos 1990 de um regime de câmbio flutuante junto de uma abertura financeira era justificada pelo caráter disciplinador que o regime imporia à políticos míopes e populistas.2Obstfeld e Taylor (1998) Ou seja, negar que há uma determinação fiscal na forma como os agentes determinam suas expectativas sobre a taxa de câmbio seria excluir a validade da própria teoria que defendeu este arranjo. Não é preciso ir tão longe, entretanto, para ver que o argumento tem pouca aderência aos dados e constrói uma narrativa parcial.
O Gráfico 1 mostra a variação ao longo de 2020 do Real e de uma cesta de moedas emergentes 3Em todos os exercícios feitos nesta nota as moedas emergentes consideradas são Sheqel Israelense, Rúpia Indiana, Rúpia Indonésia, Lira Turca, Peso Argentino, Peso Mexicano, Peso Chileno, Peso Colombiano e o Rand Sul Africano (eixo vertical principal) e da medida de risco VIX (eixo vertical secundário), a qual a literatura atribui ser um fator preponderante na determinação dos fluxos de capitais4Ver por exemplo Rey (2015).. Como se pode observar, as três séries oscilam de maneira bastante sincronizada. Há dois elementos importantes para se ressaltar neste gráfico. O primeiro é que de fato parece haver um fator externo, correlacionado com o VIX, que se correlaciona tanto com variações do real como das demais moedas emergentes. A literatura convencionou chamar esse fator de “ciclo financeiro global”. O segundo ponto importante é o fato do Real se manter acima da média das moedas emergentes ao longo de todo período, com um especial descompasso nos meses de abril e maio.
Gráfico 1: Real, moedas emergentes e VIX de 01.01.2020 — 01.10.2020
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Bank of International Settlements (BIS) e do Federal Reserve Bank (FED) St. Louis
A narrativa que se utiliza das variações da moeda para defender o aperto fiscal, está então afirmando, com base neste gráfico, que o descolamento entre Brasil e as demais economias representa uma medida da percepção de risco fiscal do país. Uma primeira ressalva necessária, embora raramente feita, é o fato de que o Real é consistentemente a moeda emergente mais volátil. Este não é um fenômeno de 2020 ou de momentos especialmente arrojados do ponto de vista fiscal. O Gráfico 2 mostra a média anual dos desvios padrões normalizados de cada uma dessas moedas de 2001 a 2019. O resultado indica que, mesmo sem considerar 2020, o Real é, em média, a moeda que mais oscila dentro de um mesmo ano5Mesmo se o ano de 2002, ano de forte instabilidade cambial, for excluído da amostra, o Real segue campeão de volatilidade. .
Gráfico 2: Volatilidade anual média da taxa de câmbio em relação ao dólar de 2001 a 2019

Mais do que isso, o Gráfico 3 mostra que durante as duas primeiras décadas desse século apenas em 4 anos a volatilidade do Real não foi superior à média dos países emergentes aqui observados6Destacando que em 2018 o Peso Argentino e a Lira Turca tiveram oscilação muito acima da média histórica, fazendo com que a variação do Real ficasse abaixo da média dos países emergentes mesmo tendo variado substancialmente neste ano. . Ao longo deste período, a moeda brasileira oscilou 61,6% a mais do que o conjunto de países de referência. Até agora em 2020, a dispersão adicional da moeda brasileira, embora acima da média, é menor do que em outros 8 anos da amostra.
Gráfico 3: Volatilidade da taxa de câmbio Real/Dólar em relação à média das moedas emergentes a cada ano

A pergunta que deve então ser feita é se, ao longo dos últimos 20 anos, o risco fiscal do Brasil foi o motivo pelo qual a moeda doméstica oscilou sistematicamente mais do que outras moedas emergentes? Parece difícil argumentar diante do quadro fiscal brasileiro dos últimos 20 anos que este é o fator preponderante na maior volatilidade cambial. Talvez os mais fundamentalistas digam que a resposta é justamente esta, que o Brasil tem um nível de gasto em relação ao PIB maior do que outros países emergentes e que a nossa carga tributária já é alta. Os dados aqui apresentados mostram que do ponto de vista da volatilidade cambial, o estranho ano de 2020 é tudo menos uma exceção. De tal forma que a narrativa apresentada para este ano não pode se abster do que há de estrutural.
Do ponto de vista da teoria econômica, são cada vez mais abundantes evidências de que os movimentos de capitais para países emergentes são majoritariamente determinados por fatores externos ao país. Argumentos nesse sentido vem desde os anos 1990 como por exemplo em Gavin, Hausmann e Leiderman (1995) e Calvo, Leiderman e Reinhart (1996), recentemente Rey (2015) trouxe novas contribuições mostrando como um fator de risco global associado às condições de liquidez dos EUA determinam parte relevante dos fluxos internacionais de capital. Outro exemplo recente focado em países emergentes é a pesquisa de Aidar e Braga (2019)7Para uma discussão recente, ver artigo no jornal Valor Econômico de Luiz Fernando de Paula, Barbara Fritz e Daniela Prates..
Estes elementos, entretanto, nos explicam a variação médias das economias emergentes e não justificam a volatilidade persistentemente mais alta do Real. Em seu livro “Taxa de câmbio e política cambial no Brasil”, o economista Pedro Rossi apresenta uma possível interpretação que parece dar mais conta da especificidade brasileira exibida pelo Gráfico 1. Pedro argumenta que três elementos distintivos do mercado de câmbio brasileiro o diferenciam dos demais países emergentes, I) a maior liquidez nos mercados de derivativos do que à vista, II) o predomínio do mercado organizado em detrimento do mercado de balcão nos derivativos negociados onshore; III) a extrema importância do mercado offshore, que representava 57% do mercado de câmbio brasileiro em 2014.
O que estes fatos nos dizem é que por ter um dos mercados de câmbio futuro mais desenvolvidos entre os países emergentes e com grande parcela das negociações realizadas fora do país, o Real está proporcionalmente mais sujeito às flutuações do mercado internacional. Seja porque, por sua dimensão, os elementos externos que impactam todas as moedas emergentes têm seu efeito ampliado no caso brasileiro, seja porque aumenta a reação a elementos internos que provocam alterações de expectativas. Isto é, pode ser plausível que o quadro fiscal brasileiro provoque alterações na taxa de câmbio, mas isso constitui menos o elemento estrutural e mais um elemento conjuntural potencializado pelas condições gerais do mercado do Real. Neste caso, vale uma análise mais detalhada do período em questão.
No que há de específico sobre o ano de 2020, o debate comprometido em construir saídas possíveis para o país precisa levar em conta o choque assimétrico que a pandemia representou por aqui. Como mostra o Gráfico 1, foi até o fim maio que ocorreu a maior parte da desvalorização do real com o maior descolamento em relação à média dos países emergentes. Para ser preciso, a desvalorização da moeda brasileira do início do ano até fim de maio foi de 34% frente a 11% do conjunto de referência. Já se considerarmos o período do início de junho até fim de setembro, o Real acumulou uma desvalorização de 5,8% enquanto a média das moedas emergentes ficou em 2,4%.
Ou seja, o período em que supostamente se atestava a maior saúde fiscal do Brasil, incluindo os primeiros meses do ano em que se defendia a retomada do crescimento econômico, foram justamente os meses com a maior desvalorização do real e maior disparidade de nossa moeda em relação aos resto do mundo em desenvolvimento. De outro lado, nos meses em que se consolidou o aumento do gasto público e nos quais se intensificou o debate sobre a viabilidade do teto de gastos, foram marcados por uma queda substancialmente mais tímida da moeda brasileira.
Além disso, foi em maio e abril que a crise política e institucional vivenciou seu ápice: o país se consolidou como a economia emergente mais impactada pela COVID–19, nestes dois meses saíram da esplanada os ministros Luiz Henrique Mandetta, Sérgio Moro e Nelson Teich e a reação internacional contra as queimadas na Amazônia se intensificou. Ao mesmo tempo que de junho em diante houve certa estabilização do quadro político, ou uma diminuição da taxa de piora. Não levar em conta estes elementos no debate cambial é ignorar a realidade para que a história se adeque a objetivos específicos.
Não há dúvidas que uma política fiscal que ancore expectativas ajudará no processo de estabilização cambial, mas nem isso sozinho resolverá as diferenças estruturais do mercado de câmbio brasileiro, como também para que seja efetiva é preciso que o cumprimento de tal regra seja crível. Quando o debate público fica povoado por narrativas parciais e ameaças ideológicas, vindas inclusive do Presidente do Banco Central, fecham-se caminhos que poderiam levar a melhores políticas, com mais justiça distributiva, responsabilidade fiscal e crescimento. O uso indiscriminado da memória da hiperinflação para querer alardear a população sobre os riscos de uma readequação do teto é um destes exemplos. O repique nos preços dos alimentos exige uma estratégia de política cambial e de regulação de estoques, não um aumento da taxa de juros ou aperto fiscal.
O Brasil ainda enfrentará grandes desafios econômicos decorrentes da pandemia, não parece prudente querer inviabilizar qualquer instrumento de política econômica. Um remédio que é recomendado a todo momento independentemente do estado do paciente deve gerar dúvidas. Cloroquinas econômicas não vão nos levar a lugar algum.
Referências bibliográficas
CALVO, Guillermo A., Leonardo Leiderman, & Carmen M. Reinhart. "Inflows of Capital to Developing Countries in the 1990s." Journal of economic perspectives 10.2 (1996): 123-139.
GAVIN, Michael, Ricardo Hausmann, & Leonardo Leiderman. Macroeconomics of Capital Flows to Latin America: Experience and Policy Issues (1995). IDB Working Paper No. 254.
REY, Hélène. "Dilemma not Trilemma: The Global Financial Cycle and Monetary Policy Independence”, NBER Working paper 21162." (2015).
ROSSI, Pedro. Taxa de câmbio e política cambial no Brasil: teoria, institucionalidade, papel da arbitragem e da especulação. Editora FGV, 2016.